domingo, 29 de abril de 2018

Olhando as flores



Ali estava ela, na borda do lago, altiva, brilhante na sua forma e cor, aprisionando a atenção dos olhares de quem passava. Afastada de todas as outras, como querendo marcar a diferença, com as demais. Aqueles que por ali circulavam, fitavam-na embevecidos e seduzidos, mesmo sem saber-lhe o nome, ou, explicar a sua admiração. Ela existe à superfície da terra, com a sua beleza, para nos alegrar, trazer brilho aos olhos, sustentar sonhos e prazer na forma dum sorriso. Ninguém se atreveria a separá-la daquele lugar, ela fazia parte de um todo, maior que a nossa individualidade, ninguém teria o desprazer de tomar para si próprio e subtrai-la aos olhos dos outros. 

Há seres que nascem com uma missão, desviá-los para outros caminhos seria insano. Não nasceram para pairar em ambiente estranho, ou acomodarem-
se a uma rotina de amantes. Possivelmente quem dela se enamorasse a chamaria, de Minha Flor. Foi esta a leitura que surgiu no meu pensamento, quando deliciado, a observava sentada no banco de madeira do jardim. Ela ia comendo o seu gelado, acompanhada pelo piar dos pombos e o grito das gaivotas que, longe do mar, procuravam outros horizontes.

Quando se levantou, toda ela se tornou visível, um rosto traçado na subtileza das nuvens, os olhos de um azul transparente e uma boca colorida pela doçura de uma cereja. O cabelo de madeixas, com o loiro claro sobressaindo, ficava-lhe bem. Sacudiu algo imaginário da saia, compôs a blusa caveada de cor branca, que deixava adivinhar os seios livres de espartilho. Nela a elegância sentia-se. Foi-se afastando deixando no ar o seu perfume, enquanto no seu caminhar, leve, como sobre papel de arroz, desenhava no ar volutas. Os que a observavam, ficaram-se, imóveis na paisagem, presos num intervalo do tempo.


dc


sábado, 28 de abril de 2018

Um corpo ao vento





Ele tinha ido definitivamente da sua vida, agora restava-lhe a socialização com os outros, era o único sentido ainda intacto. Nesse acto de socializar, mesmo sem encontrar rumo, disfarçava a sua mágoa, as suas incertezas, Num contínuo palrar, sem dar tempo de escuta aos outros, que sabia, por experiência, gostam de opinar, com seus palpites chamados de racionais, todos tão sabedores de coisa nenhuma, sobre a linguagem dos afectos. Afectos, que nos tornam humanos, e que, por vezes, pouco têm de racionalidade.
Encontrar o norte, sem bússola, era tarefa difícil nesse seu divagar. Falar e escrever era um desabafo sem eco, ou resposta. Fez do trabalho profissional um escape, alienando-se de direitos, ficando só com os deveres. Agarrou-se ao silêncio, tornou vazio o diálogo dos dias. Viajou sem destino, aprendendo paisagens. Prendeu-se nas palavras que os outros escreviam, apreciou imagens que outros produziam, visitou livrarias e museus, passeou nos jardins, olhou de pensamento livre tudo aquilo que a rodeava, sem ajuizar, deixando-se levar pelo vento. Tarde ou cedo, acreditava, tudo aquilo que agora fazia era um aproveitar do tempo, um acumular de saberes e vivências, quem sabe uma porta para o futuro com uma razão para sorrir.

dc

domingo, 22 de abril de 2018

O domingo não era o seu melhor dia





A noite está negra sem o luar e céu brilhante das noites de verão. Será a mente que o atraiçoa e existe luz fora de si, ou está mesmo escuro? Sente cheiros, ouve ruídos, até sente a brisa que se arrasta na pele da face, O absurdo é olhar e não ver. Nem as palavras, que sabe que estão lá, tantas vezes surgindo alinhadas e expressivas, como gosta de ler nos livros, nos jornais, ou até no monitor do computador. Nada, tudo negro, mesmo de olhos abertos. O que se passa nesta noite escura, que se atravessa como um labirinto sem que veja saída. Não cegou, mas não enxerga. Qual a razão desse receio que fecha o cérebro ao conhecimento, ao acto de ver? A que se fecha ele, o que não quer ver? Qual a razão da fuga à realidade, que o atormenta neste desafio de viver, neste aterrar na crueza da vida que macera a pele e os ossos, porquê se sempre tem sido isso mesmo? Que erros foram cometidos, quais os sonhos corrompidos, quem magoou? Por que razão, o frio gelado desta escuridão o assola? Dá passos errantes, naquele bosque de arranha-céus, sem saber onde parar, nem como descansar, ou encontrar um colírio, que lhe permita novamente ver com o mesmo olhar de outrora que lhe trazia as cores e os sorrisos. Talvez a cegueira tivesse como razão, esse silêncio de raciocínios ininterruptos, num diálogo surdo, entre ideias gastas e palavras sem sorrisos. A vida só lhe oferecera a existência, ninguém lhe distribuíra à nascença o manual de instruções. Ao contrário do que dizem, não tinha o destino traçado, todos os dias tinha de desenhar e inventar as formas de resistir e sobreviver ao tédio. Na prática, o que lhe estava a acontecer, não seria fruto do cansaço? A repetição dos raciocínios e a cegueira se mantinha ininterrupta. Domingo não era o seu melhor dia.

dc

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Escrita de orvalho




Agarro-me a longínqua esperança de que um dia estarás lá à minha espera, algures num lugar sem tempo, de respiração volátil, sem terra firme, antes com nuvens debaixo dos pés, naquele sentir fofo, agradável, de quem vive a concretização de um sonho de forma inesperada. Quero-te na dobra, dessa esquina do tempo, em que tudo nos surpreende, fascina e nos faz acreditar que não há coisas impossíveis, mas estórias que demoram mais a concluir. Aquela pedra, onde um dia tropeçaste, já não está lá, o tempo e a evolução tirou-a do caminho. Agora somente existe espaço verde, um lago, onde os patos e cisnes ensaiam mergulhos,  caminhos ensaibrados onde as crianças correm, adultos simulam fazer exercício e os avós de mão dada fingem-se namorar. Por isso, é mais fácil, agora, teres a certeza de que podes vir descalça de todas as preocupações, sem pose politicamente correcta. Ninguém quer saber. Só eu repararei nos teus pés descalços, nas unhas pintadas, na saia curta e leve, na camisola de linho, onde os seios desenham promessas, nos olhos claros e brilhantes, nas madeixas do  cabelo, que esvoaçando, desenham estórias no ar.
Não sei se notaste, mas estava a escrever-te, quase sem me aperceber que o fazia, tão comum é perder-me em ti, nesta viagem perene em que existimos. 

dc

sábado, 14 de abril de 2018

A mentira.. a dois




A mentira a dois, a três a quatro, sempre a mentira, para salvar o que se diz certo, a mentira para fugir da monotonia, a mentira, criando agonia a quem mente, para se salvar  e usufruir da liberdade de ser quem é. Ele engana, ela engana, todos se enganam pelas melhores razões e assim continuam, falando e justificando para os seus botões: Se digo a verdade vou estragar a paz, se eu amo, porque dizer a verdade de que amando engano? Assim vai o mundo da relação a dois, todos polígamos dizendo-se monogâmicos, em encontros “kármicos”... sempre melhor sozinho/a do que “mentiramente” acompanhado....?

dc