quinta-feira, 31 de maio de 2018

Na contraluz da razão




Foram unha e carne, mais carne do que unha, mais força que doçura, mais desejo que ternura. Foi no fio da navalha que caminharam, sofreram cortes e sangraram pelo caminho sem tempo para curar. Havia que aproveitar o tempo ao segundo, não pensar nas coisas do mundo e, deixar a lava correr alimentada pelo vulcão. Assim se foi formatando o caminho na montanha de emoções. Num qualquer momento se perderam no fumo da incompreensão e ambos se esbateram na contraluz da razão.

dc


sábado, 26 de maio de 2018

Somente o silêncio da última partida




Os minutos corriam lentamente no relógio electrónico da estação. Quando se espera, o tempo parece eternizar-se, os minutos parecem horas. Tinha sido avisado da tua hora de chegada. Temias que, por qualquer razão, fosse impedido de te ir buscar. A cidade não te era de todo estranha, mas tinham passado muitos anos desde que saíras para viver no sul. Nunca falhei. Ia mais cedo por prevenção contra o inesperado. No entanto, em algumas das tuas chegadas, intencionalmente, procurava esconder-me, por uns segundos, atrás de um qualquer pilar, para não me veres da janela da carruagem. Fazia-o numa espécie de prazer, gostava de ver o brilho do teu olhar marcado pela ansiedade e a surpresa. Quantas vezes, na tua chegada, muito a custo me controlava para não te abraçar e rodopiar contigo nos meus braços. Percorríamos a distância até ao carro num ápice, e aí, trocarmos um beijo prolongado, carregado de saudade, antes de decidirmos o que fazer a seguir..
A história repetia-se, em todas as tuas vindas, mas nunca foi rotina, ampliávamos esse tal querer, essa vontade de estar, e viver as horas, esgotando a saudade. Depois, na partida, gerava-se uma espécie de mutismo, entre o querer partir, porque necessário e o meu querer que ficasses. 
Hoje, que já não vens, a tua ausência é dolorosa. Como alguém disse, hoje vou à “estação ver os comboios”, porque não chegarás, trazendo a alegria, a intensidade da permanência. Somente permanece o silêncio da última partida.


dc

quinta-feira, 24 de maio de 2018

Um caso a pensar



Importa é não desistir facilmente. Quando não se consegue encontrar a solução, ou o caminho, permanece em “standby”, a levedar, e de vez em quando enviam-se sinais de fumo, esperando a possível resposta. Aguardar, pensar, e não desistir, confiante de que um dia, tudo se esclarecerá. Sabe-se que nem sempre as perguntas têm resposta, e nem todas as respostas serão as esperadas. Uma e outra coisa dependem do contexto, e muito mais da expectativa que se cria. Pode-se continuar a emitir sinais, se não resultar, não será por desistência, mas porque o projecto, a emoção e a vontade, já não dependem, só de si, para que tenha viabilidade. Ou seja, nesse caso, por muito que pense, o difícil é como desistir.

dc


quarta-feira, 23 de maio de 2018

coisas que um dia...




Naquele tempo leu e releu o texto vezes sem conta, e nele se extraia um pedaço que mencionava a palavra “amo” e amor.
A palavra, amo, de amar, fora escrita cerca de trinta vezes e umas quantas, amor, num pedaço de texto de vinte linhas. Repetidamente, assumindo cada uma delas, uma emoção e uma justificada razão para serem escritas. Lamentavelmente, não traziam coladas a si, o gesto que as tornariam reais. O Papel registou. A tinta secou, e o tempo passou deixando amarelecer o papel e o amor que transbordava no seu escrito. Nenhuma decisão foi tomada que pudesse satisfazer um presente, ou prever um futuro. Agora, que sendo passado, não se pode dizer que o amor morreu, mas na realidade ficou preso ao limbo, naquela estante reservada às coisas que um dia...

dc

domingo, 20 de maio de 2018

O único acaso




Na noite surgiu em palavras inesperadas e frases cantadas, que ia retendo no ouvido, enquanto o seu corpo colado ao meu se insinuava. O seu cheiro era único, não conspurcado pelo aroma dos perfumes de frasco, identificava o seu ADN que me seduzia e prendia. A voz rouca e baixa, aliciava-me ao irreal, fazia anular a presença física de objectos, de gente, punha-me a flutuar na nuvem de algodão doce, com que os seus lábios, roçando a pele do rosto, me fazia viver.
Nada acontece por acaso, tudo tem sua razão, não tínhamos tropeçado um no outro. Disse, o acaso? Que desculpas mais arranjaremos? Como se pode passar ao lado do tempo em que nos comunicávamos, revelando desejos, vontades, princípios e fins, gostos e tudo o mais que se pode imaginar. Tudo foi dito, a noite estava a ser o corolário, de muitas promessas, do que estimáramos ser, o nosso primeiro encontro. Desde o primeiro beijo da chegada, ao vinho, entornado na boca um do outro, à mesa do jantar, nada fora por acaso. O único acaso, foi descobrir que a afinidade das emoções e gozo, afinal eram comuns, e que as palavras, as frases feitas, os diálogos de engate, nada tinham que ver com aquela noite, que ainda estremecia dentro de si. 

dc