quarta-feira, 20 de março de 2019

O primeiro encontro



Não foi uma estória de Carnaval ou uma partida no dia dos enganos, aconteceu e não trouxe dúvidas, ambos sem surpresas, um perante o outro, ela extrovertida ele contemplativo. Olhos verdes atrevidos, cabelo curto loiro, boca cheia e um sorriso permanente, entrelaçando as palavras que nervosamente saiam da boca. O café tomado junto ao mar, no bar de praia, foi o prelúdio de uma noite que viria a ser longa. O fim de tarde com o céu cinzento, trazia-lhe frio aos ombros seminus, que ele gentilmente cobriu com o seu casaco de malha, e a conversa de circunstância de pequenas revelações de como afinal chegaram ambos até ali.
Saíram continuando a conversa até ao carro. O sorriso algo nervoso atingia os dois. Nunca tinham pensado na possibilidade, de que um dia se iriam ver face a face. Um beijo dado com todo o corpo e alma eliminou reservas.
Jantaram em casa, comida simples e bom vinho tinto. Entre o degustar o que na mesa havia, beijos molhados e olhos brilhantes iam ajudando a quebrar alguma reserva que poderia existir. Depois, depois não vale a pena contar, ficou na sua intimidade entre lençóis, como se de sobremesa requintada se tratasse, em restaurante de luxo do qual não queremos fazer publicidade. Bom demais para que pudesse ser desvendado, seria sempre menos do que foi sentido.
Na verdade, se entenderam por largo tempo e as palavras que os amarraram entre si, se mantiveram nos factos nos gestos nos dias vividos durante largos anos.

dc

segunda-feira, 18 de março de 2019

Olhava as fotos...


.... e prendia-se nos pequenos pormenores da sua figura. Não eram os traços de beleza que chamavam a sua atenção, sim os gestos que traziam à memória, a superfície dos seus dedos que falavam da pele, o movimento dos lábios nas frases saindo-lhe da boca, os olhos brilhando, os trejeitos do rosto, as mãos que se agitavam no dialogar. Numa aparecia um sorriso vincado, na outra um olhar profundo, o corpo em cabriola, a blusa voando na brisa, as calças rasgadas no joelho, os braços se levantando deixando o peito desenhado, as orelhas bem delineadas e ornamentadas. Algumas havia em que da palma da mão soprava um beijo, em outras, uma careta e um sorriso maroto, outras até com olhar e boca, vincados de zanga na pose forçada, tudo imagens desafiando a objectiva que na sua frente a observava.
A nostalgia, surge num repente, trazendo com ela o desconforto e pensamentos contraditórios. Qual a razão por que guardámos imagens que sabemos nos trazem memórias, que entristecem pela ausência de quem nelas aparece, ou, porque com elas vem colada a dor. Muitas delas representam efectivamente momentos, que quando foram captados, se pensavam para uma estória que ficaria para sempre e o registo fazia parte, mas depois, se não resultou, por que razão não as cortamos ou colocamos no caixote do lixo? Talvez sejam importantes como registo, não para nós próprios, mas para que outros, um dia, façam a história de forma documentada. Centenas de imagens relatando acontecimentos, sentimentos, estados de espírito, lugares, em resumo, vivências, mas já deixaram de fazer sentido nas nossas vidas do agora. Se assim é, melhor será deixá-las no baú “até que a morte nos separe”.

dc


sexta-feira, 15 de março de 2019

Custava-lhe envelhecer




Custava-lhe muito o envelhecer. Olhava-se no espelho e as rugas marcavam o seu anoitecer. Não adiantava se sentia vivo por dentro, se sorria e caminhava sentindo o vento, se a força nas pernas não lhe faltava, se o coração ainda batia por aquela que o entontecia e que tanto amava. Na verdade, envelhecia, inexorável a passagem do tempo. No rosto as rugas marcam como trilhos, o mapa duma existência, cada uma com a sua memória, mas não falam da riqueza das terras férteis, que dentro si ainda existem para cultivar as emoções, os desejos, os projectos, ou, as rotas do sangue quente que ainda circulam intensamente com a vontade e coragem de viver a vida. Por isso, não havia razão para que a idade o intimidasse, a perspectiva de vida, o tempo que ela dura e a sua qualidade, são tão relativas como muitas outras coisas.
Importante é ter consciência de que o amor acontece sem que se dimensione nenhum desses factores, tão comuns que a sociedade tem por hábito rotular. Nem quando o corpo já não corresponde à sua vontade, se deve desistir, há sempre alguma forma de dar asas ao pensamento e ao sentimento que nos percorre desde o interior, fundo, de nós próprios.

dc

segunda-feira, 11 de março de 2019

De mãos dadas




As mãos dadas sobre o teu peito, o meu peito colado às tuas costas, a tua anca colada no meu ventre, o calor dos dois, o respirar profundo que eu sinto vir de ti, no sono calmo. Sinto a doçura do teu corpo e o seu perfume, quase sinto o teu sangue correr nas veias, como se o meu fosse. É o melhor momento de amor que podia querer, no meu despertar para o dia. Levanto ligeiramente a cabeça e vejo no teu rosto um sorriso nos lábios que me faz adivinhar sonhos. Faltam-me as palavras para descrever todas as emoções que me despertas. Muito mais do que fazer amor é senti-lo neste estar, em que as nossas pernas se entrecruzam como linha num novelo e as tuas mãos seguram firmemente as minhas como se quisessem eternizar o que sentimos e somos.

dc

domingo, 10 de março de 2019

Uma outra violência




A areia incrustou-se na pele reformulando a superfície, como poros sobre poros. Já não importava, ele tomara meu corpo no escaldante areal, do mesmo modo que de seguida me abandonara, frio, violento, como se eu não fosse gente. Cumpria a tradicional brutalidade de tempos idos, em que as mulheres não tinham direitos a não ser o de servir o macho. Estávamos em pleno século XX, mas ele agiu possuindo-me com a força do "direito ancestral”.
Eu caminhava com as pernas tremendo e arrastando os pés no areal. A dor imensa não estava no corpo, mas na alma, tal era vergonha que sentia, por um dia ter aceitado aquele homem para parceiro de uma vida. Não se tratara de um acto de violência doméstica comum, do punho fechado, nem do sangue derramado, mas da posse sem consentimento do meu corpo. Sentia-me suja do seu cheiro, das suas manápulas, dos seus beijos sebentos, da sua força me penetrando.
Sentia-me desfalecer e pensava, naquilo que as pessoas diziam, no dia a dia, “a violência não leva a lugar algum”, então como poderia responder à ignomínia que tinha sofrido, naquela tarde domingueira em que seria suposto conversar para resolver desentendimentos e acabei sendo violada, era assim que eu me sentia. Fora a resposta de força perante o meu desentendimento sobre como víamos a nossa vida em comum, e a resposta ao meu desprazer de o sentir próximo de mim.
Um dia uma amiga dissera-me que o companheiro, quando ela se queixava de dores, lhe dizia “fazemos amor que isso passa”. Teoria de macho vulgar, que não entende que o amor tem sexo e deve ser bom, mas tem de ser partilhado com o mesmo querer e prazer de ambas as partes.
Nem sempre a violência doméstica é de um só sentido, mas o sentido mais comum é aquele a onde a mulher é usada para capricho de gosto alheio. Tu sabes do que falo porque és mulher, ele sabe do que eu falo, porque mesmo atrás das grades, nada seria suficiente para apagar os riscos profundos que me marcam por dentro para todo o sempre. A luta que hoje desenvolvo será sempre efémera, se me ficar pelo pensamento de que nunca voltarei à minha inocência e crença no ser humano, terá de ser antes um registo eterno, que servirá de suporte ao meu esforço, aliado ao de muitos outros homens e mulheres, para trazer a justiça e igualdade de direitos.


dc

Nota:Não foi publicado no Dia da Mulher, pois penso que esse dia, mais do que nunca deve ser de celebração e e conquista de coisas boas e não de coisas tristes.


sábado, 9 de março de 2019

Estória de Amor




Cada um, no seu sítio, agitando-se, indecisos no começar. Um vendo de cima outro observando debaixo para cima, percorrem com passinhos curtos rolando na sua linguagem. Ao fim de alguns momentos, com a confiança com que a natureza os serviu o de cima desloca-se lançando a asa agitando tudo em volta. Sem perder tempo se abeira, e provoca e sem mais aquelas lhe prega um beijo, encostam as cabeças e se vão passarinhando, até ficarem bem juntos olhando e observando o espaço envolvente até retomarem os beijos e o saltitar alegre dos apaixonados. Não era o Dia dos Namorados, mas que pareciam um par de namorados, ai isso pareciam.

dc