Escrevo-te que és agora somente saudade, para me aconchegar do amor de ti, que ainda mora em mim. Não é minha preocupação a fluidez da escrita, nem o seu rigor de pontuação ou o acerto das palavras. É antes uma performance, um acto de escrever obedecendo ao pensamento inconsciente, expresso no gesto da mão, que vagueia pela superfície do papel formando palavras. Palavras estas, não de esperança, ou de espera, antes hieróglifos desenhando sensibilidades, trazidas da memória para o hoje, entretendo os silêncios. A distância instalada no tempo e o seu lugar de acontecimento, há muito deveriam ter calado, bem fundo, esse sentimento de perda e ausência. Contrariando vontades, acontece uma flor, um brilho do sol, um simples felino cruzando no caminho, um corpo que se assemelha, ou até, uma paisagem vivida, a fazer questão de trazer tudo ao presente, como uma espécie de “déjá vu”. Escrevo-te, não te escrevendo, somente me devotando a fazer das memórias um acto de catarse, que se solta pela folha de papel, largando tinta, diminuindo o espaço branco, com formas grotescas que se querem letras e palavras, sem que cheguem a ser frases. É algo que nunca lerás, como muitos outros escritos perdidos, ou até, logo rasgados sem que a razão o explique. Importante era o seu significado como objecto, como um limpador de memória, que as vai reduzindo a um simples ponto na imensidão da matéria pensante.
dc