domingo, 31 de maio de 2020

Erro de destinatário


A crueza da verdade chegou na mensagem. Engano no destinatário? Talvez. Um lapso de tempo, em que a memória nos atraiçoa e traz da escuridão à luz do dia, o verdadeiro sentir que o tempo escondia, debaixo das suas desculpas desarticuladas, confundindo as distâncias, vivendo num possível imaginário portal entre dois mundos. A frase era o reflexo do seu viver delirante, entre o experienciar da novidade e a rotina dos dias desse alguém que a habitava.
Ele, agora se apercebia, da razão daqueles sorrisos que nasciam e morriam de modo estranho, do olhar triste transcorrendo para além do espaço físico, como se dentro de si, de repente, a saudade batesse e lhe sufocasse o peito, afastando-a de quem a rodeava. Era evidente que procurava alongar-se no horizonte, para que nem o tacto, nem os cheiros traíssem a sua vontade de permanecer naquele lugar, mas mantendo o sentimento que lhe provocava a saudade. Como aparas sobejantes do limar das frases, ficavam os restos de um diálogo inacabado de palavras, cujo significado se perdia no labirinto das interrogações e perguntas que nunca chegaram a ser articuladas.
O tempo não se recupera, dar tempo não faz sentido. O apego é um sentimento doloroso, uma abnegação doentia do eu, em benefício, duma imitação barata de amor.  

dc

terça-feira, 19 de maio de 2020

Não me sujem a água


Eu sou pato não quero que me sujem a água, preciso dela para mergulhar o pescoço e depois coçar a plumagem. Quero a liberdade do rio, do lago, ou qualquer outro lugar onde exista um espelho de água, nela possa mergulhar e sentir as suas ondulações. Não me importa que o sol plante luz e sombra, conforme lhe ocorre, eu escolherei qual o momento de me passear. Os meus amigos patinham como eu, deixando um rasto de ondulação riscando a trajectória. Por vezes, quando cai uma folha junto de mim, que começa a navegar como um pequeno barco e deixo que ela vá, como eu, sulcando a própria vida e leve as "patices" que em mim, observou. Aqui neste pequeno ribeiro, onde agora me encontro, não existem reis nem governantes que me destinem rotas, aqui a minha natureza se revela, dentro duma outra que me envolve e me completa.
Há uma criança gargalhando algures tão feliz como eu, mexendo na água deliciando-se por sentir o desconhecido. Ela ainda não foi racionalizada, ainda é um céu infinito de intuição, não precisa descrever, ou explicar, por que razão a humidade, o frio da água e as ondulações, que as suas mãos provocam, a tornam feliz. Aquela criança está mais próxima de mim que dos seus, mas um dia vai-se racionalizar e esquecer a água como agora a sentiu. A gargalhada dela rompe o ar, os pássaros, e nós, começamos todos a falar ao mesmo tempo, quebrando o silêncio e o vazio envolvente. É um colectivo que quer falar, que quer comunicar, para que ela um dia sinta a diferença, entre o hoje sentido, e o futuro, em presente acontecendo.

dc


segunda-feira, 11 de maio de 2020

As flores resistem


Considerada frágil, ela reagiu contra todas as tentativas de esmagamento. Uma fura-vidas. Tiraram-lhe o sustento, na tentativa de a quebrarem. Gemendo e sofrendo, foi vivendo com precariedade, até ao dia em que ainda viva e jovem foi conviver com os mais idosos, lugar de verdadeiros apreciadores da sua beleza e capacidade. Embora através deles pudesse fazer um retrato do seu futuro, sentia que voltara à vida. Houve tempos em que à sua volta tudo foi cortado, e ela resistira, crescera, impondo a sua figura diáfana, com um sol vivo centrado no seu corpo. Um infinito esverdeado completava-a, lembrando, um farol para novas rotas sobre o mar. Ela resistira lutando, para ser presente, na vida dos outros que amava e a amavam. Quando a quiseram, como modernamente se faz, embalsama-la em cimento, ela resistiu e criou a sua brecha para respirar e hoje é um exemplo, de abnegação e força que encanta, uma amostra viva, de que até as flores resistem às vicissitudes da dureza das tempestades ou ao meio social onde habitam.

dc

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Perfis ténues


Angustiava a partida, na mesma dimensão da alegria da chegada. Um, na sombra de quem parte, ou chega, outro na visibilidade de quem faz a viagem. Ficam os cheiros, os desenhos ténues de perfis diferentes, que se fixam na pele da espera, de uma outra chegada ou partida. Não se permitiram, delimitar o tempo e a distância, ou o seu fim, deixaram-se escorrer nos carris do vai e vem, com medo de parar numa derradeira estação desabilitada, para interromper a sua viagem em comum. As viagens foram fechadas, seladas as contas, mantêm-se as imagens de perfil ténues, mas presentes como marca de água de um registo valioso.

dc

sábado, 2 de maio de 2020

Engradados


Espalham o óleo untoso do egoísmo e do individualismo, o prazer da superfície das coisas, materializando-as na vida, que regam de desejo e ambição desmedida do ter. Vão-nos automatizando, para sobrevivermos robots da sua máquina infernal de poder. Desequilibram, criam novos paradigmas, rotulam e dão-nos os grilhões modernos, que aceitamos pacificamente, sobre a camada da pele, para que ninguém fuja ao seu controlo. Antes de tudo acontecer, somos desabilitados das asas do raciocínio, da inteligência, dos valores. Alimentam e sustentam o medo que nos faz trabalhar para sobreviver o “cada um por si” sobre o seu domínio.
Engradados de forma indiferenciada, bonecos articulados de uma sociedade corrompida, acumulam-se uns sobres os outros, aceitando pacificamente da voz do mandante, os ditames das elites obscuras, que querem e se vão apoderando, das suas mentes e corpos, tornando-os bestas egoístas, carnais, do eu, antes dos outros. Preparam-nos um futuro, cada vez mais curto, no qual não seremos actores da sua escolha.

dc