terça-feira, 28 de maio de 2024

A voz da memória


Há memórias que lentamente se vão esvaindo, ao longo da vida. Vão-se transformando em resumos cada vez mais curtos e longínquos. Essas memórias, construidas, nas mais diversas circunstâncias da vida, feitas de momentos alegria e felicidade, desenhados e escritos na mente, com imagens, desejos e vontades. Todas elas, trazem algo de precioso, que em algum momento tentamos reviver. Uma paisagem, uma flor, uma brisa, um lugar à beira-mar, um passeio pela mata, um melro negro de bico amarelo, um peixe vermelho, a revolução com cravos, a luta contra os diabos, o amor na revolução, os olhos comunicando, um beijo com paixão, um abraço, as falas havidas, a criança que nasce, o primeiro choro; os cheiros, ah… esses tão difíceis de cativar na memória. E por fim, a voz, por de mais escutada, que se sobressai entre todos os ruídos e nos afasta da cegueira do esquecimento.
Quando o som da sua voz chegou, não ouvi, escutei, com todo o meu corpo, e todas as memórias regressaram, e recolocaram-me no mesmo sentir. Não me lembro bem do que conversamos, estava somente atento às memórias que se iam redefinindo, trazidas naquele momento à superfície. Findo o telefonema, olhei para aquele objecto tecnológico, e pensei, afinal, há memórias que se podem reciclar. Tiramos-lhe, os agravos e desacertos, e tornam-se mais leves e agradáveis, até se lhes pode acrescentar mais esta, que agora se escreve, ao arquivo central, das emoções.


dc

quinta-feira, 23 de maio de 2024

Meditar de fato-macaco


Está sentado no banco do jardim. Veste uma espécie de fato-macaco escuro, com marca de uma empresa, no peito do blusão, que parece ser de uma oficina mecânica, talvez a mecânica seja a sua profissão. À sua frente, e nas suas costas, estão os prédios da cooperativa, que tem um nome sugestivo “Gente do Amanhã”. Não é a primeira vez que por ali está. Aquele é o lugar, que parece ter sido, escolhido para se isolar e fazer o seu almoço. Ele chega, encosta a bicicleta no gradeamento, e ali, longe de restaurantes acessíveis, e possíveis, tira a sua bucha e com ar meditativo inicia o seu repasto. O seu olhar, abrange a zona ajardinada e a parede do prédio à sua frente. É um olhar vago, como que perdido, entre a mastigação e os pensamentos que o assaltam, naquela meditação procurada. Os pássaros, sentem-no e na ânsia de encontrar pequenas sobras, rodeiam-no de forma agitada, em diferentes pio, pios. Os melros, que abundam naquele lugar, percorrem a zona relvada, movimentando-se na procura de galhos e comida. Nem a sua graciosidade, motiva a sua atenção. Nada parece afastá-lo daquele ar vago. Está, como se procurasse encontrar a explicação, para aquele seu, estar ali. Fica-me a dúvida, se a razão de estar ali, tem a ver com uma razão de ordem económica, ou simplesmente, foi uma forma por si escolhida de encontrar a própria paz. No meio de toda a luta diária, dos dias de hoje, encontrar paz, e recuperar o equilíbrio, é quase obrigatório, para sobreviver.
O primeiro de Maio, dia do trabalhador, celebrou-se há alguns dias, muito há ainda para lutar. Questiono-me: será que ele pensa, na gente do amanhã? Terá ele algum dia ouvido, ou lido, o poema de Vinicius “Operário em construção”?


dc
………

     Um silêncio de torturas 
     E gritos de maldição 
     Um silêncio de fraturas 
     A se arrastarem no chão. 
     E o operário ouviu a voz 
     De todos os seus irmãos 
     Os seus irmãos que morreram 
     Por outros que viverão. 
     Uma esperança sincera 
     Cresceu no seu coração 
     E dentro da tarde mansa 
     Agigantou-se a razão 
     De um homem pobre e esquecido 
     Razão porém que fizera 
     Em operário construído 
     O operário em construção.

                 (última parte do poema "Operário em construção" de Vnicius de Morais)


quinta-feira, 9 de maio de 2024

Resistir, Resistir Sempre


Rasgões no corpo, bofetadas na face, buracos na alma, dor sofrimento, albergam o corpo frágil e diminuto, deficientemente alimentado, subjugado à lei do mais forte, que naquele momento é dominante. Dentro, bem fundo alimenta, neste resistir no presente, a vontade de superar, que resulte viver, e se prolongue na face da terra, o tempo suficiente, para dar a resposta adequada, a quem não respeitando o ser humano que é, viola todos os seus direitos, massacrando os seus irmãos, com a máquina de guerra, com a fome, a sede, retendo-os, a céu aberto, como alvos fáceis da sua brutalidade. As feridas são incuráveis. Em especial aquelas que deixam dentro de si, as lágrimas de milhares de crianças, mulheres e homens, o desespero dos sobreviventes, e daqueles que tudo fazem para manter vivas as suas esperanças para além da cura do corpo. Fica na memória o cheiro dos mortos e, um horizonte de terra queimada, mas também, dela nasce a certeza que um dia voltarão a fazer florescer pátria, livre da terra ao mar.

 

dc