quarta-feira, 24 de agosto de 2022

A tua boca

 


A tua boca é sempre o esboço do que está para chegar, é o prelúdio, de um prazer maior, é um registo que se cola na memória da pele, que nos deixa o sabor a pouco, do muito que ansiamos ser feito. Tantas vezes, somente um toque suave dos lábios e outras tantas, com a humidade das línguas se tocando tacteando vontades, descobrindo outros lugares de resposta do nosso corpo, satisfazendo desejos, abrindo caminho a lonjuras maiores, a afinidades subtis, a cheiros e registos eternos, que serão memória e saudade, segundos após se realizarem.

 

dc

 


segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Além das aparências


Sabia que ela era uma mulher, da área das leis e muito responsável, que trabalhava imenso, sem perder o foco. Quase diria obcecada, atitude essa, onde não sobejava tempo, para ter, o seu próprio tempo. Esse seu modo de ser, levava-o a pensar, se não seria por ela temer, voltar a envolver-se física e emocionalmente com alguém; uma espécie de fuga para a frente, evitando confrontar-se, ou de libertar-se, dos espartilhos que a si própria colocava. A ser assim, difícil seria encontrar o amor que tanto ansiava, ou melhor, procurava alcançar. E seria bem possível, que o outro, nela interessado, se lamentasse: preferindo que fosse uma ladra habilidosa, sem medo de ser presa, fazendo tudo, para o ter sempre perto dela. Atrevia-se a pensar, se realmente, alguma vez, ela teria arriscado, a conhecer efectivamente alguém, a sério. Temeria enganar-se na escolha, na expectativa, na figura de preferência, como se na escolha do vinho, no vestido inadequado, do sutiã fora de tempo, ou sem ele? Quantas vezes, teria ousado, usar a linguagem mais vulgar na intimidade da cama, dando azo à imaginação, despida de pruridos balofos, deixando o corpo surfar na onda do desejo, sem medo do que o outro pensa, deixar que aconteça, sem perda de tempo, sem julgar o que ainda nem começou? Alguma vez aconteceu o beijo espontâneo, a mão que acaricia, debaixo da mesa, quando os olhos sorriem marotos? Alguma vez, andou pelas ruas, de mão enfiada no bolso traseiro das calças dele e ele nas dela, rindo pelo prazer, da intimidade do gesto, no aconchego de sentir os dedos na carne?
Sem erros, a realidade seria sensaborona. A fatídica certeza, traria a loucura, seria ausente do prazer da aprendizagem, nos diferentes obstáculos no caminho que se percorre, ou do gozo da concretização, ao alcançar objectivo traçado e o sabor da sua conquista. Somos vítimas, de prisões intelectuais, do sistema ridículo, que nos impõe as cadeias de comportamento social, que nos diz o que devemos, ou não, fazer. Tememos o julgamento dos outros, deixamos de ser quem somos, para sermos aquilo que os outros propõem que sejamos, mesmo quando nos apetece correr pelas ruas à gargalhada, ou balançando os braços de mão dada, como se pêndulos, brincando a embalar o amor que nos domina. Tantas são as vezes, que nos apetece sentar no baloiço da nossa infância, sem receio da idade, ou vergonha, que nos limite, e vogar naquele vai e vem que nos tira os pés do chão, para podermos sonhar. E, porque não?


dc

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Na praia a sós


Lado a lado de mão dada, vamos andando para o longe; vagueando, tacteando o chão de areia, que se afunda sobre os nossos pés. Vamos ao encontro de um espaço vazio, longe de outros olhares, que não aqueles que devotamos a nós próprios. Fugimos do rectângulo diminuto que nos sobeja, onde proliferam os guarda-sóis, os corpos esparramados, preenchendo o areal, como se não houvesse amanhã, e, da escuta cusca, ou da agudeza, rebarbativa, de algumas conversas pessoais, das quais teremos de ser ouvintes forçados. É a busca consciente, dum espaço, outro, que nos permita o silêncio, ou somente o som das nossas vozes. Queremos ficar libertos do espartilho das vestes e de acessórios desconfortáveis. Ali, nesse lugar de nenhures, onde a natureza é um delicioso lugar de estar, que nos liberta os sentidos, onde se pode gritar em voz alta o que cada um sente. Ali, os corpos com as costas tocando a toalha imensa da praia, expondo a nudez do corpo e da mente, sobre o sol escaldante e onde pudemos banhar o corpo na água do mar, como recém-nascidos. O tal lugar, onde os corpos não são vítimas de escrutínio estético, alheio, se podem beijar e tocar, ou até se permitirem a que o amor se faça, com a mesma fluidez, com que a água do mar banha o areal. Depois, perdida a noção temporal, será o fim de tarde, se arrastando, que nos dará a noção do regresso ao lugar de partida, acompanhando a retirada do sol, que vai repousando na linha do horizonte, para o descanso do dia.

 

dc

domingo, 7 de agosto de 2022

A dúvida


Naquele primeiro encontro, fora das convenções, não sabia, se fizeram amor, ou simplesmente sexo empenhado, saboroso, requintado. Fizeram-no, foi bom e pronto, para quê avaliar muito mais. Fizeram-no repetidamente ao longo daquele dia, como nos tempos posteriores, que estiveram juntos, sem limitações, descobrindo, apreciando cada bocadinho de si. Não seguiam o Kama Sutra, mas alimentavam as tempestades e repousavam na bonança. Conheciam os seus cheiros, no cio, ou fora dele, saboreavam cada interstício de pele, sem medir o tempo, sem amanhã. Jogavam bem naquele campo, sem domínio absoluto de nenhuma das partes. Era uma parte óptima dos dois. À partida ambos embarcaram na aventura da descoberta, empolgados, confiantes, sem muitas palavras, deixando as emoções dominarem, sem sentirmos ser preciso saber algo mais. Foi “amor (?) à primeira vista”. Se assim foi, nasceu cego, que nem intuíram sequer, possíveis in/compatibilidades, nem naqueles pequenos nadas que iam surgindo nas conversas que versavam temas fora do leito. Pareciam temer revelar-se, como se fazê-lo fosse uma disputa de razões, ou que teriam de pensar igual. Conquistar o presente, alimentando projectos com vista o futuro, parecia ser assustador. Ambos sabiam, que somente os “jogos de cama”, não seriam suficientes para alimentarem o que acontecia, que para durar e ser real, seria necessário “primeiro fazer a cama para nela se deitarem”. Poderiam até aceitar, que bastava o que tinham, necessário era assumi-lo. Esta era uma outra tarefa difícil de levar a bom porto, nenhum queria admitir ser somente sexo, porque temiam fosse mais que isso, fugiam de aceitar que teriam de mudar alguma coisa, para que a perenidade do que existia tivesse mais substrato e se tornasse duradouro. Partir deixaria dúvidas, ficar exigia compromisso, reconhecer que algo mais acontecera. Simultaneamente, num coro a duas vozes, surgiu a pergunta, e agora?

 

dc

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Na busca da diferença

 


Queria apanhar o sol, deitando-se na linha do horizonte. Queria fixar os últimos instantes do dia com a sua cor quente e as alterações da sua forma, conforme se vai sumindo aos nossos olhos, como sempre faz, num esconde, esconde, entre o dia e a noite. Não fujo à regra, sinto o fascínio do comum dos mortais, perante este fenómeno, mas queria buscar a diferença, para que este momento fosse só meu, que a escolha tivesse o meu toque, o meu enquadramento, fosse o meu sol. Nesse procura de captar a melhor imagem, que já em outras alturas tentei obter, fui fazendo sucessivos disparos, quando de repente uma ave que desconheço o nome, talvez pressentido a minha motivação, resolveu ajudar, colocando-se no lugar certo, para equilibrar a composição e enriquecer o momento. Fico grato por tal ajuda, que me encheu o peito de alegria e vaidade pela sua parceria, que decidi publicar a imagem.

 

dc