quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Um sorriso, além das palavras


Pensava ele. Não ignoro o seu sorriso, seria impossível, ele é uma brisa que chega para refrescar a canseira dos dias. É verdade que não o manifesto, que o vivo em segredo. Quando ele surge, na moldura do seu rosto, fico-me pelo silêncio deliciando-me com a sua leveza, com as linhas que o desenham na tua boca, com a doçura com que adentra em mim. Dizem, os artistas, os filósofos, os criadores, e muitos outros pensadores, que o amor não é, só palavras ricas de significado, é a disponibilidade para com o outro em diferentes circunstâncias da vida, na alegria que traz, no abraço prolongado que aconchega, na sua cultura, singeleza, beleza da alma, tantas e variadas emoções e razões. São eles que falam, quase sempre, menosprezando a materialidade do corpo no surgir de tais sentimentos. Talvez tenham razão. Para mim, tudo bem, é possível que alguém pense desse modo, mas não estou convencido. Não fosse aquele seu sorriso, a porta de entrada para o todo que representa, o resto seria insuficiente para chegar até mim, ele fala de dela, sem pronunciar qualquer palavra, ele é um dom raro de humana criatura. Aquele seu sorriso, foi o ponto de partida para a minha atenção, razão do meu entusiasmo de partir à descoberta, de todo o resto, que dizem, estar mais além do que é físico. Talvez tenham sido esses pensamentos, que o seu sorriso me desperta, que agora ao chegar da noite, com a chuva derrubando o silêncio, no seu cantarolar costumeiro a derramar-se sobre a terra, me sugeriu que a vida é construída, no meio de estações de tempo e de experiências. O seu sorriso, chegou como verão inesperado e tem-se mantido. Agora, que foi batizado pela chuva que anuncia, que o outono está à porta, fica-me a esperança de que se manterá na órbita do meu espaço, na sucessão das estações, evitando que o meu se definhe, pela sua ausência. É bom saber dela, seja na noite que chega, ou no dia que se inicia, com um sorriso que fala além das palavras.

dc



 

 

 

 

 

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Na moite escura


Na noite escura, o silêncio se apresenta, alvoraça o meu dormir e traz-me o acordar. É o espanto, é o vazio dum não existir, é um olhar fora do corpo, é um respirar paralisado, um espaço de tempo de ausência, com o suor e o calor do corpo assenhorando-se dos lençóis. A energia está lá, sem escala convencional fazendo afluir o sangue aos pensamentos e ao registo da caixa preta das memórias, trazendo-o da zona de morte do sono interrompido. Só eu sei do silêncio. Não há rastro de actividade, nem ruído. Aguardo no escuro, sem me atrever a abrir os olhos. Evito saber se é um sonho de desconcerto, ou uma realidade que me absorve sem permissão. Forço-me a abrir os olhos, e resulta num pestanejar de milésimos, onde entrecorrem múltiplas estórias, logo esquecidas.
A beira da cama, é lugar de ficar em perturbado raciocínio. Esticar os braços para o alto, sem crença em Deus a que apelar, é tentar a estabilidade, fugir da depressão, da raiva dos dias. A cabeça não se eleva, carrega a vergonha dum humano. Cheira a morte, lá longe, de crianças, mulheres e homens, que de braços estendidos, mãos em desespero buscam o pão e arriscam uma bala assassina. As lágrimas afloram os olhos, o sono mal acontecido traz a mágoa, a impotência, a angústia de como superar este inferno, este caos premeditado, trazido à sociedade.

O palhaço, que desonra quem o faz profissão circense, com máscara sua arrogante, ameaça todo o mundo, com voz de falsete, trazendo um sorriso amarelo aos submissos temerosos de desagradar. Procura colocar na sombra, a ignomínia dos seus actos de outrora. Usa o velho tempero, dos antecessores, para esconder a realidade, trazida pelo ricaço enforcado. Cria outra sombra, em proposta de Riviera de Luxo, sobre cadáveres inocentes.
Tombo-me sobre os lençóis, em peso morto, no desconforto de nada fazer, nem mesmo elevar a voz, ou mostrar a vergonha covarde de assistir sem me mexer.

 

dc