segunda-feira, 17 de março de 2025

Preso no horizonte

 

Resto, imóvel, preso no horizonte, onde aguardo o surgir. Medito, não sei, é uma letargia estranha que me atravessa, é um daqueles momentos em que há posteriori, dizemos que foram segundos, onde milhares de pensamentos ocorrem.

Sinto-me parado no tempo, isolado do mundano. Sinto-me água, brisa, cheiro, a ganhar alento, neste encontrar-me bem por dentro, bem no fundo. É incrível este sentir, que me liga à natureza, e me faz sentir ínfimo, perante a sua grandeza. Os meus problemas existênciais, são variados, no entanto, não tão graves, comparados com os demais, do mundo que me rodeia. Ladeado pelo mar de um lado e as árvores do outro, escolho a leveza da alma lavada, deixo a mente navegar sem amarras, livre para avançar na descoberta desse desconhecido, que tantas vezes o medo condiciona. Sem caminho, sem percurso destinado, ou a estabelecer, sinto uma energia e vontade que me torna capaz de recomeçar num qualquer outro lugar.

As gaivotas rareiam, sobre o mar calmo, os pássaros no seu voar chilreiam, como ensaiado coro, tudo combinado em baixa sonoridade. Da brisa, as árvores estremecem, num arrepiar de prazer, o ar traz-me o cheiro da terra, que se mistura a intervalos com o da maresia. Tudo é sereno neste meu estar. Não sei se o mundo finou, ou se fui eu que me isolei o suficiente. Na verdade, viverei do sol enquanto ele existir. Reconhecerei o vazio sem medo de o viver. Aquilo a que chamam civilização, não é um lugar de agrado, é somente onde me despejaram sem me consultarem, onde me emparedaram, com leis e absurdos, de mentes perversas que pensaram por mim, sem saber de mim, como se a natureza já não fosse suficiente para me fazer crescer limpo de invejas, materialidades e muitas outras coisas desnecessárias. Por vezes, temos de deixar de ser, para renascermos com outro espírito, com mais capacidade e resistência para sermos nós.

 

dc


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Dia de São Valentim..talvez

Chegou na esplanada e sentou-se numa das várias mesas. Levantei a cabeça, olhei de relance e vi-a. Cabelos com madeixas, loiro e castanho-claro, esvoaçando, um sorriso bonito com um trejeito meio irónico. Os olhos eram grandes, esverdeados, desafiadores, quase falavam. Tentei regressar à leitura, mas não consegui, aquele rosto, pairava na minha mente. Já vira aquele rosto e aqueles olhos em um outro lugar. Tirei os olhos do livro e observei-a, agora com mais atenção, num fogacho fez-se luz. Aqueles olhos e aquele rosto, tinham-me ficado na retina uns dias antes, quando subindo as escadas para o meu apartamento, no regresso do ginásio, deparei-me com ela varrendo as escadas. Ao ver-me, para eu passar, parou o que fazia, olhou-me com aqueles dois lagos, como se quisesse que neles mergulhasse. Tal foi a intensidade daquele olhar, que o retive durante o tempo em que tomava o duche e prolongou-se até este momento tomando café na esplanada. Procurei voltar à leitura, quando ouço uma cadeira a arrastar-se, e, julgando eu ser a da mesa ao lado, elevo os olhos e vejo-a, a sentar-se na minha mesa e ficar em silêncio, mantendo o sorriso. Ficamos os dois calados, os nossos olhos se fixando, um no outro, descobrindo o insólito da situação. As palavras não surgiam, a boca estava seca, as mãos quase largaram o livro, entretanto ela cruzava as pernas, que se pressentia debaixo das calças justas, serem exuberantes. Ali estava ela como se fosse algo normal sentar-se à minha mesa. Não resisti, não interrompi o mutismo dos dois, mas ganhei coragem, levantei-me, coloquei suavemente, mas com firmeza, a minha mão sobre a dela e procurei que se levantasse. Sem trocarmos uma palavra, somente as mãos se deram, ela seguiu-me sem questionar.
O meu apartamento ficava a pouca distância e para lá me dirigi. Enquanto caminhávamos ia observando o seu perfil elegante, pernas compridas numas calças de ginástica, justas, um top branco que deixava ver uma parte da barriga lisa. No seu rosto, não havia qualquer vestígio de tensão, na sua boca o sorriso acompanhava a ironia que se via no fundo dos olhos. Abri a porta de acesso às escadas, parei no hall de entrada, virei-a para mim, olhando-a bem dentro dos seus olhos, beijei-a, sentindo os seus lábios macios, quentes e ligeiramente molhados. Foi como se o mundo tivesse parado naquele instante e tudo o que nos envolvia desaparecesse, éramos só nós. Uma eternidade depois, recuperamos a ideia de subir as escadas. Coloquei a minha mão nas suas costas e enquanto subimos as escadas, íamos fazendo paragens para nos beijarmos e nos tocarmos, como dois amantes generosos a usufruir ao segundo. Abri a porta, entramos de roldão no apartamento e ela sem hesitar deixou-se ir, como se dona da casa fosse. Espantava-me o seu silêncio, o sorriso, agora interrogativo, mantinha-se na boca entreaberta, onde o batom quase desaparecera, e o seu olhar de água ficara mais intenso, como se lesse as minhas intenções. Aos tropeções, as peças de roupa voando em todas as direcções, estatelámo-nos na cama, ainda por fazer, do meu quarto. Começamos a sinfonia de outono, inverno, primavera e o estralejar da consumação do calor de verão. Não houve palavras, que pudessem ser registadas, nenhum de nós estava capaz de o fazer, mesmo nos ouvindo, sentíamos a urgência dos corpos se doarem. A sua boca era doce, tinha um hálito quente, que se sentia na agitação da língua, enquanto as mãos faziam conversa, procurando as palavras sobre a pele dos corpos, o seu rosto ia mudando de expressão a cada momento, do espanto ao gozo.
Não sei o tempo que decorreu até sossegarmos e sentir a sua cabeça sobre o meu peito e os seus lábios roçando a minha pele a cada respiração. As nossas pulsações diminuíram o seu ritmo. Sentia o cheiro a lavado do seu cabelo, ainda húmido; um perfume suave emanava do seu corpo. A mão aberta, de dedos esguios, repousava sobre o meu estômago, os seus pés, perfeitos de unhas pintadas de um vermelho bonito. O seu peito não era muito grande, mas perfeito, esmagava-se sobre o meu. Absorvido pelo que via, arrepiei-me ao ouvir as primeiras palavras, surgirem da sua boca, num tom meigo e rouco, como perguntando e sabendo a resposta: poderíamos ficar para sempre ligados, como a tua pele que agora se cola na minha, não?… Será isto o amor à primeira vista? Estou aqui como sempre fosse este o meu lugar, conhecemos os nossos corpos como se tivéssemos o seu mapa colado na memória dos dedos, no prazer das trocas de carícias, nos cheiros partilhados, na calma que agora nos acalenta, distante do mundo lá de fora.
O calor do seu hálito fazia-se sentir sobre a minha pele, enquanto falava, perturbando-me o raciocínio. Levantei-lhe o queixo, os meus olhos mergulhando nos seus, ao encontro do que neles se revelava. O presente, era a marca indelével do futuro.


dc

 


quarta-feira, 16 de outubro de 2024

História Perversa

Sinto-me agredido, por essa vozearia, na comunicação pública. Sei, que trazem as palavras, constroem frases, cruas, duras, ensanguentadas que exacerbam as emoções. A mente se desgoverna sem freio, vai em direcção a um lugar indescritível, talvez pelo terror do que se lhe apresenta, talvez pelo medo de se conscientizar, que afinal é realidade, não um pensamento, ideia ou sonho. Uma rede estruturada, de comandos subliminares, transmitindo, de fora para dentro, tenta influir, no que a mente elabora, para que ela por si só, vá ao encontro do caminho que lhe destinam. Sinto que ela tenta tocar o meu íntimo, e então me apetece perder a humanidade. Cortar definitivamente com essas gentes, que se me apresentam tão miseráveis, que vulgarizam a vida, tomam misseis ao pequeno-almoço, drones como aperitivos, arrotos ao almoço e no desenrolar da janta, bombas neutrónicas como sobremesa, nesse espaço de descomando da humanidade. No meio disso tudo, corpos inocentes caem na terra, tal qual adubo, satisfazendo estômagos milionários insaciáveis.
Quanta vergonha, conseguirei aguentar, para que se não solte o verbo, ou a fúria embraveça o gesto?


dc


sábado, 12 de outubro de 2024

Lágrimas

As lágrimas nem sempre são de dor, raro são de alegria, reflectem diferentes formas do nosso humano reagir. As mais das vezes, correm pelo rosto sem lhe encontrar sentido para que aconteçam, brotam como um fio de água, na superfície dos sonhos, e se transformam num rio caudaloso, que vai deslizando e construindo as suas próprias margens. As lágrimas são o aglutinar do cimento com que nos tornamos humanos, são retrato da personalidade de quem as produz, são libertação do mundo interior, que se solta e escreve uma linguagem inesperada que prescinde das palavras.

 

dc


domingo, 29 de setembro de 2024

O primeiro beijo

 

Tenho, a marca de água, na memória, daquele primeiro beijo, que me fez sentir as pernas incertas e quebrar a minha inocência. Inocência, porque ainda nem conhecia o que era beijar, muito menos, um beijo sensual de línguas que se cruzam. Somente, lábios sobre lábios, um beijo tímido, no medo ser rejeitado, antes de se realizar. A sua boca tinha um desenho harmonioso. Lábios carnudos, rosados, húmidos, suaves ao toque, e um sabor abstracto não explicável, mas apetecível, que me atraía, e me fazia repetir beijando, como se a repetição, ousasse, descobrir a magia, daquele momento, ou o sentimento daquele gesto. As minhas mãos seguravam o seu rosto, enquanto observava os seus olhos, no espaço entre cada beijo. Olhos, claros, quase cinza, que adquiriam um brilho tão intenso, que me enredavam, e punham o coração em sobressalto. Poderia eu, explicar todas essas reações, por ser o primeiro beijo, com o enlevo da experiência e da inocência, mas isso, seria desmerecer toda a magia do que acontecera.

 

dc


quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Afinal só quero ser

Eles não sabiam, também não haveria como saber, que dentro, sentia um vazio enorme, que a afastava das pessoas e marcava o rosto, fechando-o, numa espécie de indiferença, que não procurava. Tantas vezes tentou abrir-se num sorriso, ou expressar-se em falas alegres, ou pelo menos, assertivas, sem que isso lhe fosse possível. Os cantos da boca apontados para baixo, marcavam a sua expressão e transformavam a fisionomia do seu rosto. A sua aparência exterior, estava aquém daquele vazio que a preenchia. Não sabia como isso acontecera, nem sempre fora assim. Em tempos fora disputada por amigos e colegas, como companhia divertida, seja na mesa do restaurante, no café, em festas, férias, ou de tertúlias várias, em conversa e debate, fosse de política, ou outras actividades sociais e culturais. O que morrera em si, o que fora que adentrado no seu âmago, tirara-lhe a razão, até de comunicar. Não, não era um “retrato de boa rapariga”, sossegada, que procurava nos silêncios que a dominavam, como uma forma de estar, no meio do outros, isso ela sabia que não. Algo mais profundo aterrador, a submergia, num contínuo de instabilidade e insegurança. Sem a percepção, da razão do surgir das lágrimas, de forma extemporânea, dando lugar a um choro convulso arrasando todo o equilibrio interior. Sentia que cada vez era mais difícil. Quanto mais se fechava, mais longe ficava, de tudo que à sua volta existia, menos vontade de participar no que a envolvia.

Era sua preferência, fechar-se no seu mundo. Sentava-se numa esplanada, junto ao mar, cuja força e imensidão serviam de calmante. Assim, se ia distraindo, ouvindo as várias conversas que chegavam coadas pela brisa, ou observando as pessoas que circulavam à sua frente, lenta ou apressadamente e, em especial, os rostos que reflectiam muito do que as movia. Ouvindo e vendo tudo, sem filtro, nem julgamento, enquanto as gaivotas com os seus voos acrobáticos, sobre as águas a distraiam de tal modo que a convocavam para os seus voos aleatórios, em que as emoções se esmoreciam levando-a à sonolência. Em algumas, dessas ocasiões, tentava descobrir, donde tinha surgido tudo o que agora acontecia consigo, mas era tarefa difícil e enfadonha, recuar no tempo, vivendo e remoendo o passado, para saber deste presente. Era tarefa inglória, há coisas que acontecem fruto de circunstâncias, das quais é difícil discernir, qual a que despoletou tudo o que a abalava. Seria a mesma questão de procurar saber, o que surgiu primeiro, se o ovo se a galinha. Certo. Certo, é que cada dia que passava, se assenhorava de si a vontade, de se livrar de tudo o que a manietava, ser dona de si, e menos do mundo e das regras que lhe queriam impor de fora. Liberdade de querer ser quem era, com defeitos, insucessos, acertos e desacertos, virtudes ou não. Afinal, só quero ser.

dc


domingo, 22 de setembro de 2024

Num lugar chamado terra

Como gotas de orvalho que se desprendem das folhas, assim passa o tempo e os dias, na mesma intermitência. Cada vez mais devagar, sem enumerá-los, ou classificar, apenas deslizam de um para o outro numa rotina detalhada.
Passeia os olhos pela paisagem. Ao longe, o rio corre, entre as margens, com árvores de porte alongando apontando os céus. Ali está, sentado num pequeno banco, à porta da casa rústica, construida com grossas paredes de pedra, com um amplo alpendre construido em madeira.

A natureza é tudo o que rodeia aquele lugar. Esquilos atrevidos, descem e sobem as árvores, ou se aproximam com curiosidade. A passarada alegre, com o seu chilrear, acompanha o marulhar do rio, num ruído sinfónico. Longe está o pesadelo dos carros, dos sons agitados das buzinas das fábricas, dos automóveis, da passagem dos aviões pelo céu, do zunzum diário das multidões movem, do confronto de vivências, da circulação variada de todo um mundo que se chama sociedade. A natureza, o ar puro, os cheiros ricos e variados funcionam como limpeza para a sua mente. Traziam-lhe a calma, a serenidade e disponibilidade para deixar o cérebro livre, para que a intuição lhe orientasse caminhos. Assustaram-no quando dissera que ia para o outro lugar, mais perto do campo e da serra, viver de outro modo. Viver sim, ao sabor da sua vontade. Plantar, algo que pudesse comer, conviver com os animais, beber água que corria, cristalina, entre as pedras. Ler, ouvir música, escrever, pintar. Gritar todos os dias a plenos pulmões sem medo do incómodo de assim se expressar perante a riqueza da sua liberdade. Agora o tempo não contava como processo de aceleração. Somente dias e noites e as mudanças das quatro estações, que lhe serviam para dizer, que tudo continua a evoluir para o fim, neste lugar chamado terra.

 

dc