quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

"Já não escreves para mim"




De repente, a noite trouxe o silêncio e ao acordar não teve voz.
Ficou frio por dentro, nem os lençóis grossos e felpudos o acalentavam. Mexeu-se devagar com medo de que não a sentisse, que não estivesse lá, que já tivesse partido. Era uma fuga da realidade, para o sonho, que não queria interromper.
Quando juntos, depois do amor não queria que se afastasse. Queria que ficasse com seu corpo colado a si, para repetidamente usufruir do beijo leve, ainda quente do amor recente. Adorava sentir a sua respiração sobre seu peito, no aconchego do ombro, até que o sono, pressentido na respiração regular, chegasse. Não raras vezes durante a noite, em que ela adormecia primeiro, afagava-lhe o cabelo, muito de leve, para a sentir, procurando manter-se ligado à sua presença. De manhã cedo, ao acordar, muitas vezes ficava quase sem se mexer, sentindo o cheiro e o calor do seu corpo subindo até às narinas e, deliciado, de olhos fechados e absorvendo todas aquelas sensações. Nessas alturas a vontade de lhe tocar era enorme, queria mais uma vez sentir a suavidade da sua pele, mas não o fazia com medo de lhe perturbar o sono, e aquele seu respirar regular de quem confia e se sente protegida. Colocava a mão suspensa, bem próxima,  quase tocando, como se fosse um raio laiser percorrendo-lhe os contornos, orientado pelo calor do seu corpo.

Foram eternos momentos, de um só gozo, de um sentir e um estar intenso, repetido e vivido em segredo temendo que se desfizesse na partilha. Por vezes, ela acordava,
  e olhando-o com aquele seu mar, do nada dizia: ”Já não escreves para mim!”, mal ela sabia as inúmeras vezes, que ele com as sua mãos a desenhava, e que as palavras que lhe dedicava eram soletradas em silêncio no diário do seu pensamento. Nunca escrevera para outrem, ela fora a musa e a sugadora de todas as suas palavras, roubando-lhe a liberdade de as soltar. Ele próprio nunca pensaria, que um dia, tudo seria uma folha em branco difícil de preencher.

dc




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