quinta-feira, 26 de setembro de 2019

O dizer...

....., que importa se esconde a lágrima furtiva, o tempo da dor, a raiva contida, o tempo perdido, a angústia da vida, se o eco não acontecer?
O dizer, perde-se nas almas que se desencontram, na tristeza e desentendimentos, nos abraços que perdem sentido, na carícia que não acontece e se esmorecem os beijos. No dizer há uma procura de resposta, uma recepção à palavra do coração de quem fala, e se esta não surgir tudo se evapora, é levado pelo vento, se dilui no pó comum da terra. O dizer, é a fala que não resulta, se o destino é alguém com a surdez da indiferença às emoções da voz, aos valores expressos, à dor ou alegria de quem diz. O dizer é a necessidade, é o evitar que seja esquecido o que de humano reside em si e, tantas vezes, é a última oportunidade de perceber a linha que demarca o presente e o futuro.
É bem possível que o silêncio escreva melhor, diga com mais profundidade e nos poupe à experiência da resposta como silêncio, no entanto preferimos dizer. Nós gostamos, temos necessidade de dizer, de ouvir a nossa voz pronunciar em voz alta o quanto amamos, ou sofremos, o que nos desgosta, ou anima e engrossar a tonalidade ausentando o medo miudinho que nos prende. Por isso, dizemos quase para nos ouvirmos, afugentando as dúvidas, esperando, ainda que não escutados, nos afastemos das sombras que nos impeçam de sermos nós próprios.


dc

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Vivo enquanto dura


Entre quatro paredes vazias, vivendo do seu próprio relevo, deixam um espaço maior para observar a sensualidade da tua expressão, a singeleza do vestir exíguo, o teu porte sugerindo a aventura de descobrir para além da superficialidade das coisas. Sempre tiveste o condão de me enlevar, despertando em mim todas as fantasias de voar por esse céu, onde os beijos são nuvens de algodão e a realidade possível é uma orgia de emoções. Gosto de derrapar nessa estrada sem fim, onde me levas, mesmo sabendo da dificuldade de atingir o teu horizonte. Entrego-me não contando o tempo e vivo enquanto dura.

dc



sábado, 21 de setembro de 2019

Aparências


Esconde os seus segredos, como todos, nas coisas mais ínfimas que o constroem. Não revela os dias que chora, os dias que odeia, as dores que tem, as angústias que o dominam. Na falta de dinheiro aparenta não ser pobre, na fome o sorriso de barriga cheia, usa a indiferença, perante o máximo interesse que o seduz. Os seus sonhos, são escondidos debaixo do colchão onde dorme, ou ficam disfarçados, naquele aspecto de sem-abrigo a dormir em soleiras de casas abandonadas. Mitiga a ausência dos que ama, o vazio, o silêncio que escolheu, protegendo a alma com folhas mortas que o outono da vida vai despejando sobre ele. Não vê o circo quase desde que se conhece como “crescido”, não precisa, é o palhaço que enche o espaço diário dos outros com sorriso afivelado, como se fizesse stand up soltando palavras em ritmo crescente com as gargalhadas dos espectadores. A verborreia solta-se-lhe com a mesma alegria, com que um burro zurra, recusando a pressão do dono para que ande. Lê para “matar o tempo”, na realidade escondendo a ignorância, da mesma forma, que outrora usava tintas para se simular capaz de pintar os dias dando-lhe cor. Esconde a incompetência, falando da competência dos outros, como as performances de artistas que sentem a necessidade de explicar a arte.
Na realidade vive uma vida de faz de conta, de esconde, esconde para não ter de enfrentar a pergunta a que não quer responder. Duvidam que o invólucro tão vistoso, seja um raro solitário, num vaso onde se contém a vida. Olham-lhe a pele, pensando não ser hipótese de futuro. Afinal não deixa pistas por onde comecem a investigar, ou para acreditarem que o tempo que lhe fez a sua marca e lhe trouxe a sabedoria da prática, não a inteligência, para perceber que o futuro é uma mancha difusa como uma manhã de nevoeiro onde não se enxerga a forma.
O segredo, na totalidade, tem sido serenidade de passar os dias,
afastando o fantasma da proximidade do final desta aventura que se chama existir.
dc

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

É domingo..


Amanheceu o dia, as palavras aconchegavam o seu ouvido alegrando os seus olhos com imagens de fadas e gnomos, enfeitando os jardins que dentro de si proliferam, quando a vê. Não há boca que mais deseje beijar e de abraçar, como quando ao acordar sente o perfume do seu corpo, a suavidade da sua pele e os seus cabelos cocegando o seu nariz. É um momento único, que só dois que amam sabem privilegiar e impedir que a desfaçatez do mundo que os rodeia seja capaz de tirar-lhe um pedacinho que seja.

É domingo, mas não é por isso que tudo se encaixa e a vida se aquieta só para os dois. Todos os dias são um prazer no amanhecer juntos, mesmo que o correr dos afazeres, tire alguma calma. Não permitem eles, que haja o que houver, lhe roubem a beleza desta pequena e tão grande coisa, que se chama o “nosso acordar”.

dc

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Transparências

Encontra-se suspensa no espaço, não teme que a transparência revele a sua forma e a cor dos seus pensamentos.

Melhor seria deixá-los guardados, assim não permitiria que descobrissem o seu sorriso, que por vezes acontece; as lágrimas que escorrem pelo seu rosto, por vezes abundantes nas tristezas e alegrias que a tomam; nem as declarações de amor raras, mas existentes; das tempestades e bonanças inumeravéis.
A transparência, evita o trabalho de inventar mentiras, de alimentar sonhos errados, de se passar pelo que não é, impedir os cenários que não deseja, deixar que surja na pele quem é, que o brilho dos seus olhos ou os trejeitos da boca sejam a cara do que pensa. Tem sofrimento pela vulnerabilidade em que fica, mas muito mais leve que o seria, se a opacidade fosse o seu caminho de estar no meio dos outros.

dc