quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Na sozinhês do banco de jardim



Gosto de me esperar, único, na sozinhês do banco de jardim. É domingo, a manhã está amena. Observo de modo meditativo, as árvores e as flores sobre o jardim, os pássaros, que neste meu esperar silenciado, me acompanham com o seu cantar melodioso, e não sabem, muito menos, adivinham, o quanto me fazem companhia e alegram. Fascina-me a sua graciosidade, o seu saltitar, nervoso e dinâmico, sobre o tapete de relva, ou o seu voo fugaz para a árvore mais próxima. Todos parecem iguais de morfologia, mas distintos na cor e desenho bem diferenciado, como que cada uma das suas “famílias” se identifica. O melro, que do preto só se distingue o seu pequeno bico e as rosadas patas; o pintassilgo de roupagem colorida, a poupa, encristada em cores sóbrias, a pomba acinzentada que parece ronronar, o raro canário amarelo de cantar distinto, e nos dias de hoje a predadora gaivota, fugida do mar e das docas, se passeia pela cidade, onde esgravata dos seus lixos abandonados, na busca de comida que no mar já não encontra.

Tudo isto neste esperar pacífico, onde estou, tal estátua, indiferente para quem me vê. Invisibilidade que leva ao engano, a pomba breve junto aos meus pés e o cão surgido, que se encosta de necessidade na minha perna, logo fugindo de espanto perante o meu prolongado, shiiitttt. Chegam até mim, trazidos pela brisa, aromas dos diferentes comeres das casas próximas, vêm enunciando, o menu melhorado, domingueiro. Vêm matizados com os odores do jardim, uns de refogados de cebola, estalando, outros de assado de carne melhorado, ou peixe grelhado. As vozes das gentes, que ali habitam, diluem-se em murmúrios entrando pelos ouvidos, rompendo o ar com facilidade. Enquanto isso ruídos dos carros da cidade se esbatem na lonjura. Adivinho naquelas casas, os banhos matinais domingueiros, apurados pela ausência da pressa, as barbas que se desfazem com cuidado, as mulheres que se perfumam e cuidam do seu rosto. Todos escolhendo cuidadosamente as roupas que saem da rotina do trabalho e surgem como a estrear. Como se à missa, todos tivessem missão por ir. Também posso lobrigar, muitos outros que se aproveitam, do lazer possível, e desfazem o tempo como lhes apraz, abandonando-se num desmazelo procurado, de indolência, tudo feito a desoras, distraindo-se a ver televisão, ou até um possível sexo gostoso e assim quebram a rotina do trabalho da semana.

Sinto-me num domingo adormecido, como aqueles que premeiam a Páscoa de todos os anos, com nuvens que se misturam na leveza do céu, brancas e cinzentas, que o sol vai furando em entretantos. Este é um domingo sem falas, nem interrupções, neste meu observar e pensar, onde também eu me cuido estando só.

 

dc


terça-feira, 27 de setembro de 2022

Ausência

 

Acredito que a saudade não mata, caso contrário há muito estaria morto, tal a falta que me fazes, a cada minuto que o calendário vai levando da vida.

dc


segunda-feira, 5 de setembro de 2022

O sapo nem tempo teve de virar príncipe.

 


Os olhos brilham, um meio sorriso aflora-lhe os lábios cor de rosa, mostrando levemente os dentes certos e bonitos. O cabelo loiro, quase branco, encaracolado e comprido, cai-lhe sobre os ombros. Tem um casaco de malha cor rosa, muito suave, que a veste por cima da camiseta, aconchegando o corpo.
O almoço depois do banho de mar, num pequeno restaurante, acompanhado de vinho branco e sobremesa, desenrolado com agradável conversa, deixou-os leves e bem-dispostos. Pagam e saem.
Vão passear num pequeno jardim próximo, quando chegam, poucos passos andados, ela coloca a écharpe, de tecido leve, sobre o chão e deitam-se nela, sobre a relva. Olham o céu azul sobre as suas, cabeças bem próximas sentindo o vibrar dos corpos, com risadas e disparates que vão dizendo, vivem o momento. Sente-se a intimidade e a liberdade de estar, a alegria diz-lhes que o tempo não existe. O mundo pára em redor, só eles, são, o restante é cenário a compor a imagem.
Podia ter sido para sempre, mas ficou por aí, tal é o medo que se gera quando nos parece bom de mais. Naquele jeito bem português de ter medo de viver a felicidade quando esta nos toca, logo se foram inventando, ou desconfiando razões, matando desde logo, a probabilidade, sequer, de poder dar certo. Encontram-se logo prumos, paredes, materiais de isolamento do quotidiano, do passado, de uma outra gesta e usam travões às quatro rodas levantando os obstáculos, que nem sombra fazem no chão.
Saíram do jardim, os óculos escuros fixaram-se na cara, o negro visível fechou as portas ao futuro. O sapo nem tempo teve de virar príncipe.


dc