sábado, 29 de maio de 2021

Uma estória de silêncio

Quando se conheceram, já as rugas mapeavam o seu rosto e a maquilhagem era insuficiente para o esconder. As coxas já começavam a ficar roliças e pesadas, contrastando com o peito débil encimando o corpo. Coisa pouca, perante o seu sorriso atrevido, o brilho dos olhos, cor de mar, o veludo da sua voz e aquele perfume do seu corpo. “Pode-se dar tudo a uma mulher, menos a idade”. Tudo nela ultrapassava o tempo, trazendo para o presente a vivência duma navegação à vista em mar ondulante de delícias, e sonhos de voos errantes, entre nuvens, sem destino. Na realidade parecia uma flor que se não deixava morrer pelo estio, ou qualquer outra estação. Aparentemente frágil, tinha expressões, físicas e faladas, de segurança e firmeza na realização dos seus desejos e vontades. Com inteligência, verdade seja dita, usava o sorriso e a voz quente, encaminhando as coisas para satisfação das suas vontades. Tinha um discurso reduzido, pouca capacidade de partilhar intimidades, de dividir razões, ou conversar sobre hipóteses nunca antes, por si, elaboradas. A aventura nela só tinha um caminho, a descoberta do amor que queria. Como toda a rosa tem espinhos, ela não era fácil, tinha de ser seduzida todos os dias. A sua rebeldia, provocava insegurança e dúvida, assim mantinha o seu amado, sempre na expectativa de que, um dia, tudo poderia dar certo. Era confuso, para os de fora, perceber como se apaixonaram e evidenciaram momentos tão ricos de emoção, durante longo tempo. Na verdade, durou o tempo necessário da realização total do puzzle, as peças, desiguais, se encaixaram na reentrância, ou saliência de uma e outras, desenhando a imagem final. O amar, acontece, sem haver uma fórmula para dar certo, ou que explique que ambos se completam pela semelhança, ou pela diferença. É bem provável, tenha sido a procura de encaixar as diferenças, a motivação para se manterem, mesmo quando a distância ia provocando estragos.

De repente o silêncio, o orgulho sobrepôs-se, travando a iniciativa da descoberta do seu significado. Faltou maturidade para o aceitar e incapacidade para avaliar e interpretar a importância que ali assumia. Esperar, sem perceber a mensagem subliminar, é matar o que ainda estava vivo e, assim, possível fecho de um ciclo. Sendo o silêncio a sua praia, com ele se encontrava e reencontrava, sabia também que era melhor que o vazio, o silêncio era reflexão, espera, acção sem palavras, ou gestos, era um intervalo de preparação para o acontecer. Não era o vazio, era só ausência, o vazio seria mais, o nada, a inexistência de si próprio, as emoções no limbo. Há muito aprendera que tudo tem um princípio e um fim; no início tudo se diz e se faz, tudo alimenta o prazer da descoberta, para que o romance se escreva, sem falas perdidas. O fim traz a dor e alguém se pode machucar, isso torna as coisas difíceis. Nesse momento, faltam-nos as palavras para expressar o que sentimos, perde-se o discurso, as palavras, não se tornam falas e morrem no pensamento. Fica impossível avaliar os factos da rotura, porque a dor se sobrepõe ao demais.

 

dc


segunda-feira, 10 de maio de 2021

A imagem desfocada


Em determinado momento descobrimos, que a memória de alguém outrora importante nas nossas vidas, ficou reduzida a um rosto, tudo o mais, já se diluiu nos interstícios daquilo que fomos acumulando, como conhecimento físico, ou das emoções que percorrem a pele e se dispersam em milhares de terminações nervosas. Na imagem desfocada da memória os traços evidentes foram-se esfumando; os seus lábios, a cor dos seus olhos, o realce e forma das pestanas e sobrancelhas, os fios de cabelo, castanho-claro, esfumam-se no emoldurar do rosto, a delicadeza do seu nariz, em contraste com as maças do rosto, suaves e rosadas de outrora têm um desenho difuso. É um rosto que funciona de forma subliminar, que vai perdendo a capacidade de se evidenciar no meio de muitos outros que circulam ao seu redor, perdendo a clareza da forma, para se distinguir, dos demais; é uma imagem suavizada quase sépia de uma beleza estranha, que evoca tristezas e ausências, sem a consciência do porquê. Possivelmente, aquele rosto trouxe-o dos sonhos, numa última tentativa de resistência, à perda definitiva, caso contrário lembrar-se-ia dele com maior rigor e definição, assim como do corpo e outras coisas partilhadas, que estavam ligadas ao passado.

dc



sábado, 8 de maio de 2021

A ver o rio

 

 

Cheguei e passeei-me pela beira rio, depois sentei-me e fiquei silenciosamente, observando os praticantes de exercício físico de fim de semana e de todos os dias, os passeantes, a sós, de mão dada, ou lado a lado conversando, e os que simplesmente, como eu, sentados, eram companheiros de partilha daquelas imagens, que se sucediam como um filme aos nossos olhos. Quanto a mim, fui seduzido pelas crianças na sua algazarra alegre, brinquei com eles nos baloiços, pesquei à cana, voei com as gaivotas, naveguei com os pequenos barcos de recreio, vibrei com a brisa que vinha do mar, banhei-me de sol e alonguei-me no horizonte que me trazia a outra margem fervilhando de movimento e cor. Uma certa leveza se foi apoderando de mim, fazendo-me esquecer das máscaras incómodas, o medo que ainda se sente, nos olhos escondidos nas olheiras profundas, nos desvios de trajectória ao cruzar dos caminhos. Fui para onde o pensamento me quis levar e quase me esqueci, que o tempo passava e tinha de regressar. O espanto da situação deixa-nos aturdidos, não sabemos se vivemos, ou se sonhamos, temporariamente ficamos fora do chão e uma paz interior se instala e um prazer estranho nos faz sorrir e caminhar de regresso, ao velho mundo que habitamos, com energia renovada.

dc