quarta-feira, 28 de abril de 2021

Não há como fugir


Apaguei tudo aquilo que te documentava e que me lembrava de ti: as fotografias, a escrita trocada, a morada, os números de telefone, as ligações digitais, a forma de vestir, as reacções intempestivas, as frases menos assertivas; até, coloquei um perfume activo dentro da casa para apagar os cheiros que me lembravam momentos em que estávamos como unha e carne, pele sobre pele, boca sobre boca. Recorri a todos os estratagemas, só não contei que a memória me atraiçoasse, com outros processos, intervindo, recordando-me a todo o momento que, tu existes, e estás algures vivendo. Quaisquer olhos que vejo são os teus, se o cabelo tem determinada cor, ou formato, lembra-me o teu; qualquer figura que circula, independentemente do lugar ou espaço, perto ou longe, tem algo de teu. Até as imagens na publicidade, nos filmes, na internet, ou nas revistas de entretenimento, sempre me trazem à memória algo da tua pessoa. Mas, mais incrível de tudo, é ter-me deparado com este texto, escrito por ti, e guardado no meio de centenas de folhas de papel para rascunhos:
    

Passear de mão dada..gargalhar de felicidade…ver estrelas aconchegada num abraço…discutir no meio do hiper o que fazer para o jantar…cheirar velas de baunilha e chocolate e pensar qual das duas comprar para aquela noite mágica…ver um filme debaixo da manta e comer pipocas os dois…
Sentir ,,,saborear..absorver…partilhar e viver intensamente as  emoções e os sentidos!…gostava de voltar a ter isto tudo!…mas não tenho e possivelmente já não terei!


Se o Universo faz isso, será que o faz para não desistirmos, ou para que aprendamos pela experiência? Seja qual for a intenção, demora tanto a acertar, nem determina uma data para que se cumpram os seus desígnios, em vez disso, nos atrapalha a vida e o tempo de a viver.

 

dc




quarta-feira, 21 de abril de 2021

O perigo somos nós

Do confinamento entre lugares, passou-se ao confinamento de mentalidades e comportamentos.

Vejo-os circular tropeçando na pressa de fugir ao respirar de outros. Zombies. Como se os olhos estivessem presos por fios invisíveis de marioneta. Tiraram-lhe a face, deixaram-lhe os olhos fundos como único lugar de identidade. Muçulmanos sem ser, vítima de algozes disfarçados de bem feitores. Surripiaram-lhe a liberdade, apelando a um bem maior que serve de metáfora para a morte por descodificar todos os dias. O medo está instalado, a pressão exige obediência, submissão, aceitação da voz única. O discurso repete-se, para que a mentira se torne a verdade, sem que outras vozes se ouçam e o contraditório se revele. Vamos sendo colonizados por opiniões daqueles que defendem outros interesses que não são os nossos. Defendemos os que nos afectam e prejudicam, aceitamos os seus conceitos e fazemos deles nossos. Crédulos alguns, denunciam, e apelam a algemas e mordaças invisíveis, para aceitarmos até, que respirar é uma graça que eles fazem o favor de conceder.

dc


    “O grande êxito do capitalismo neoliberal é governar-nos não contra a             vontade, mas graças a ela e através dela, convencendo-nos de que a             situação em que estamos é o resultado das nossas escolhas e decisões”             Nora Merlín