quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Bate leve


Esperava o bater na porta, e ao abrir esquecer todo o tempo passado sem ti. Olhar-te e reconhecer-te de ontem, não dos dias perdidos sem nos vermos, como se a memória se fundisse nos tempos. A virtude estava neste amar imorredouro, que permanecia como se fosse a minha pele. Bate de leve, é suficiente, o teu perfume vem com o vento antecipando a tua chegada.

 

dc

 


segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Reflexo na água

 

Mergulhava no reflexo que a água lhe devolvia. Ficava absorto, avaliando o mistério das duas existências. Uma real, crua, humana quanto baste e uma outra liquefeita, nas nervuras da água, procurando ser. Uma dependendo da outra, e tão longe daquilo que ambas significavam. Uma mera representação com as falhas de perfeição, mas mais verdadeira do que a outra, pretendida limpa e sem defeitos, na verdade, até mais hipócrita, pois ninguém seria tão perfeito assim. O mistério se mantinha, perante a dificuldade de entender, quais as leis físicas que produziam aquela imagem no espelho de água. Não era uma ambição narcisista de ser belo, mas sim, ver o melhor de si, numa visão total sem ângulos cegos. Tinha de aprender a aceitar-se nas imperfeições, essas que não trazem a cobrança sobre o seu modo de ser, nem o olhar adjacente de censura, nem o ónus do medo tão humano de errar. Perseguir o objectivo de ser perfeito, seria sujeitar-se ao escrutínio e vontade dos outros, correndo atrás do que não é seu, só para ser amado, seria excessivo, tirava-lhe a liberdade e autonomia de tomar as suas próprias decisões.

 

dc


terça-feira, 30 de novembro de 2021

No calor do muro


Encolhido, como uma pequena bola de penugem, os seus olhos diminutos pareciam interrogar a minha presença com a máquina em riste. Desconhecia ele, a sedução que exercera sobre mim, desde que sobre o muro pousara aquietado, indiferente, aos que como eu, sentados na esplanada, aproveitavam o sol de inverno para superar o frio. Possivelmente, ele procurava o mesmo calor com que o sol presenteava o muro, talvez fosse cansaço, ou a penugem fosse insuficiente para o proteger. Apetecia-me agarrá-lo com as mãos, trazendo-o para perto do peito, no interior do meu sobretudo, como se de uma criança se tratasse e quisesse proteger. Pensamento, somente isso, nunca me permitiria tirar-lhe a liberdade de voar e escolher onde se acolher. A natureza emociona-nos e faz-nos apreciar, como estes pequenos nadas, obtêm uma dimensão maior, afagando-nos o coração.

dc


segunda-feira, 29 de novembro de 2021

No abraço do amanhecer

 

Os dois deitados, nus, fazendo conchinha. Ele sentia o cheiro dos cabelos dela, misturado com outros cheiros adocicados, trazidos pelo bafo morno dos corpos entre os lençóis. Ela dormia e a sua respiração era calma e profunda, como uma criança livre, desregulada das normas da sociedade. Com a sua mão livre, ele percorria o corpo dela, contornando os seios, o abdómen, as coxas delineadas, como se procurasse mapear cada detalhe para ser memória em caso de ausência. O corpo já restava saciado, era o prazer do toque e a ternura, que faziam a necessidade do gesto, numa forma de amor silencioso. Ela no subconsciente sentia-o e enconchava-se mais, como o sonho dentro do sono. Aquele abraço, era como um casulo confortável e protector de onde sairia renascida. A relação que viviam, não tinha um contrato em papel assinado, estavam unidos pelo querer e liberdade de permanecer. Conheceram-se sem pontos e virgulas, se havia interrogações não se colocaram, tudo sem imagens culturais, ou evidências físicas pré-estabelecidas, foi tudo de origem, sem imitações, uma troca de olhares, conversa versátil e prolongada, uns dedos que se tocam, um cabelo que se agita, uma gargalhada que se solta. Tudo o resto, tem sido um filme sem realizador, sem enquadramentos ou sequências planeadas, tudo feito na câmara imaginária, à mão livre, tentando de ser felizes, seduzindo-se mutuamente, produzindo o conteúdo dos dias, voando sem metas no horizonte.


dc


 

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Vontade de viver o dia

 

As palavras eram insuficientes, para descreverem aquela iluminação solar que verrumava o céu de tons alaranjados, ou o contraste, das sombras que dominavam o chão de folhas caídas e os carros estacionados na orla dos passeios. Completando o cenário a gaivota estática se desenhava em contraluz, pousada num dos candeeiros, sensoriando no horizonte, o mar bravio donde fugira, por ausência de peixe gordo que a fizesse mergulhar. Ali, no topo do seu mundo, ela esperançava o lixo, que o contentor pudesse transbordar, buscando apaziguar a fome, concorrendo com os sem-abrigo, que brevemente sairiam dos colchões cartonados, instalados na soleira duma porta qualquer. Entretanto, ouve-se algures, o badalar das sete horas da manhã. O sono que ainda trazia no corpo, se esvaecia agora nas tonalidades, que lhe traziam espanto e arrimo, quebrando a rotina. Era o começo de um dia de outono sem temores de vento agreste, da chuva e gelo. Os olhos perdiam o horizonte, agarravam-se ao colorido que observavam e transportavam para dentro de si calor, alegria e vontade de viver o dia. Assim pensou: vale a pena aqui estar, neste soalho alcatroado, porque a dureza das coisas da vida, não retira a vivência das belezas do mundo.

dc


quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Labirint'ando

 

 

Foi à procura do papel da sorte, na míngua de respostas para os azares, que na porta batem, mesmo sabendo de partida, que a sorte dá trabalho. Não pensava em infelicidades, antes nos muito falados algoritmos, como se diz agora, que não acertam com prontidão. Cansava de esgravatar escolhas, com preciosismos assoberbados, sem atender ao presente, amarrado aos sonhos e desejos do passado e imaginando diferentes, futuros possíveis. O quotidiano de silêncios no prolongar do tempo, para não exibir fraquezas, nem faltar discernimento para suportar ausências, resultou-lhe em rouquidão. Na busca da diferença, chamada sorte ou trabalho, caminhava ele com os olhos assentados no chão, debulhando cismas e razões de sustento, de uns tantos infinitos problemas, concluiu que precisava caminhar sossegos e descaminhar incertezas. Azar e sorte são elementos de estatística, mais servem de escusa, para a falta de decisões.

 

dc


quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Di'vagar'

Escrevo-te que és agora somente saudade, para me aconchegar do amor de ti, que ainda mora em mim. Não é minha preocupação a fluidez da escrita, nem o seu rigor de pontuação ou o acerto das palavras. É antes uma performance, um acto de escrever obedecendo ao pensamento inconsciente, expresso no gesto da mão, que vagueia pela superfície do papel formando palavras. Palavras estas, não de esperança, ou de espera, antes hieróglifos desenhando sensibilidades, trazidas da memória para o hoje, entretendo os silêncios. A distância instalada no tempo e o seu lugar de acontecimento, há muito deveriam ter calado, bem fundo, esse sentimento de perda e ausência. Contrariando vontades, acontece uma flor, um brilho do sol, um simples felino cruzando no caminho, um corpo que se assemelha, ou até, uma paisagem vivida, a fazer questão de trazer tudo ao presente, como uma espécie de “déjá vu”. Escrevo-te, não te escrevendo, somente me devotando a fazer das memórias um acto de catarse, que se solta pela folha de papel, largando tinta, diminuindo o espaço branco, com formas grotescas que se querem letras e palavras, sem que cheguem a ser frases. É algo que nunca lerás, como muitos outros escritos perdidos, ou até, logo rasgados sem que a razão o explique. Importante era o seu significado como objecto, como um limpador de memória, que as vai reduzindo a um simples ponto na imensidão da matéria pensante.

 

dc

 

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Dança em desenhos de amor


 

Movem-se nas areias movediças dos corpos, fogem chegando, enovelam-se, a superfície da pele é a referência de cada instante que se segue. Os limites do corpo, estão nas polpas dos dedos das mãos e dos seus pés. Chão, é o suporte que os agarra naquele seu deslizar de penas levadas pela brisa. Languescentes, os corpos obedecem às notas, a configuração vai fluindo, tudo em círculos quase perfeitos e movimentos voláteis. A sensualidade é dança em desenhos de amor, formato de apaixonados, movimentos em frases feitas de mãos, enquanto os corpos se movem como respiram. Sente-se uma tensão, entre fuga e chegada, tristeza e alegria, num crescente de emoções que seguem o seu ritmo, a entrega é total até surgir ofegante, o êxtase. O mundo reduz-se, volatiliza-se, só existe a segurança de quem abraça. A osmose é perfeita, cai o corpo sem tocar o chão, a bolha de ar etérea, é feita da energia dos braços que o envolvem. Assim vão, naquele ritmo de loucura, onde o amor à dança, faz acreditar que há algo mais além que vale a pena. A serenidade regressa e o sorriso aflora como um suspiro de prazer.

dc

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Amar (n)a natureza


O outono, caminhava a passos largos ao nosso encontro, recebia-nos com a sua chuva de folhas, que caíam sobre a terra húmida, coberta de ervas e musgo. Aquela mesa de madeira, com os seus bancos corridos, sabiamente colocada no espaço, era um convite, para permanecer e observar toda aquela riqueza visual, aguardando a tua chegada. Tinha tudo o necessário para nos preenchermos, com a sua diversidade de aromas, formas, cores, momentos de luz e sombra, duma floresta inexplorada e os seus viventes. Era o local ideal para um piquenique amoroso, condimentado de natureza. Aguardava-te ansiosamente, para partilhar o prazer de, usufruir tudo, contigo nos meus braços; sentir por inteiro o teu corpo adoçando as formas, para se encaixar no meu, os teus cabelos roçando-me os lábios e trazendo o teu perfume, perturbando-me o discernimento dos sentidos. Depois… depois deixaríamos que as nossas mãos irrequietas, se tornassem vivas, para ir mais longe, destruindo barreiras, primando o amor nos seus direitos e libertar as bocas seladas de beijos, para irem ao encontro de outros lugares, sabores e saberes. Duas naturezas irmãs se cumpririam, trazendo-lhes a calma à mente e ao corpo, enquanto a origem da vida se instalaria dentro de si.

 

dc


quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Mutismo

 


O Mutismo, era para si, uma morte das falas, na escrita, no pensamento criativo. Não o temor da folha em branco, mas o desencanto, a insuficiência, incapacidade de sair de dentro do próprio labirinto por si criado. O mutismo crescia de horas a fio, balançando entre o tudo e o nada, criando muros, num solilóquio entre desejos acumulados, esperando melhores dias, ou sentidos sonhos amordaçados, e pela falta de vontade, ou amorfia, de realizar. Entendia que o seu mutismo só se destravaria, quando alguém, despretensioso e livre de juízos de valor, entendesse para além do que mostrava, e colocasse o seu ouvido atento, na recolha do escutado, com respeito tumular. Caso isso não acontecesse, o mutismo se iria incrustando cada vez mais no limbo e na desnecessidade de o interromper.

 

dc

 

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Sem rótulos de calendário



Aparecem, em pequenas gotas, na base dos olhos, é uma reacção, de extrema sensibilidade, aos estímulos exteriores que vão chegando, elas são o reflexo do peso que a idade começa a ter, cada dia que passa. Daí, se vai fechando, fugindo do conflito, da dor que dilacera a carne por dentro, para que a fraqueza não se assuma, mesmo quando decorre em causa alheia. Foge da embriaguez do jogo envolvente. Isola-se. Não permite o contágio dos outros sobre si próprio, acumulando mais dores e sofrimento, ao que já é o seu. A sua face, é um registo bem marcado dos anos, que nem sempre tiveram os melhores dias. Puseram-lhe, um rótulo, baseado na idade, esqueceram-se dos seus desejos e vontades. Procura, manter-se à parte dos outros, sejam amigos, ou filhos, que tentam comandar seu destino, julgando-o, pela data do calendário, não pela sua capacidade física e mental, muito menos pela sua independência, alegria de viver, e resistir ao fim anunciado. Eles nem imaginam quanta capacidade, física e mental; o quanto procura, mais saber, mais conhecimento, e disponibilidade de amar, desde que seja a causa certa, a pessoa certa, no momento certo, em que as dúvidas não existam e que o passado, que não acrescenta, seja só experiência reduzida a uma marca ténue, sem afectar o presente. Deixem-me viver, é o grito silencioso, sem rótulos de calendário, ou frases feitas, perante aqueles que se sentem actualizados e jovens, porque dominam as novas tecnologias, e vivem amarrados a um objecto de comunicação, em online permanente, que os isola e deixa à margem do mundo dos humanos.


dc

 

 

 

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

desencontrados no tempo

Talvez, desencontrados no tempo, pensa ele, enquanto a observa, uma mistura de sentimento lhe inunda o peito. Se angustia de não saber, quando aconteceu de se cruzarem e não chegarem à fala. Enquanto isso, a música, com a sua sonoridade, sublinha as imagens, que surgem em pano de fundo na sua mente, embaciadas, sem a nitidez necessária, para identificar pessoas e lugares. Ela é alguém que existe dentro de si, como destinada a fazer parte do seu percurso, como um registo ancestral, dos fazedores de destinos, Como um dejá vu, que ele busca incessantemente entender, onde surgiu e porquê. A voz, nem sempre audível, faz difícil saber se existe, e se existe, onde vive e como vive e em que lugar do planeta, ou até se sonha e o que a emociona. Ela está lá, algures, bem dentro si, como parte do cenário que as imagens difusas vão desenhando. Ela é pensamento activo, que a todo o momento se desenrola, agregando sensações várias, físicas, mentais e emocionais, que provocam sobressalto e fazem as pulsações acelerarem. As borboletas no estômago são factuais, os espasmos no peito esmagam. Sente o aguar dos seus olhos, que o faz lembrar, com tristeza, o tempo e espaço, como algo que se dissipa, sem permitir que realidade conclua e esclareça onde tudo começou. O certo, é que se instala um silêncio e um frenesim contraditório, de busca, em todos os olhares, que surgem cruzando o caminho dos dias, numa espécie de procura duma peça do puzzle, necessária para completar o propósito de estar aqui entre os mortais.

 

dc

 


quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Certezas

Cansam-me as certezas dos outros que me impedem de ter as minhas incertezas e viver com elas. Coisa tão certa, impede-me o divagar e a capacidade criativa que não se afirma pelas certezas, mas no explorar todas as coisas, incertas, sem ter de antecipar, se algum dia, poderão afirmar-se como certezas. Tenho para mim, que mesmo aquelas, que damos como certas, possivelmente num futuro próximo possam ser postas em causa. E isso que importa, se a caminhada for gratificante?
Eu também tenho dias que acordo, cheio de certezas e firme para avançar, levanto o peito, e vou em frente no que quero, subjacente à minha certeza. No entanto, umas horas depois, verifico, que nada fiz quanto às certezas, que tinha programado realizar. Afinal não sabia muito bem, se o que iria fazer, deveria ser feito, ou deveria esperar outro momento, para ter a certeza, de que faria as coisas do melhor modo. Na prática, acabo por contornar e desenvolver outras ideias e realizações, ao princípio, incertas. Daqui, eu deduzo, que somos uns troca-tintas sempre cheios de certezas, que as circunstâncias em que vivemos mostram-nos que tantas certezas podem ser um empecilho.

 

dc


quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Pedir um tempo


Sinto-me observado, por esse teu olhar indefinido, entre tristeza, dúvida e mistério, que cativa a minha atenção. Não direi que te amo, mas que te estou amando e, para mim, é suficiente. Nada é eterno, a não ser esse momento em que mutuamente nos observamos, como se quiséssemos “parar o tempo” e usufruirmos o estarmos ali, parados, olhando, falando, rindo e vivendo. Demos mais um passo, para além do dizer dos olhos e das palavras, afundámo-nos no conhecimento, no intencional descobrir dessa realidade palpável, no dia a dia de existir. No amadurecer, sem colorir, tudo se avalia com ponderação, mas a insegurança, arrecadada de outras estórias, faz temer o que poderá seguir-se e dá coragem ao apelo de um temporário distanciamento, ou um pedido de “desconto de tempo”. Como num jogo, no qual o treinador precisa de instruir a equipa. Mas sabes o tempo não pára, os movimentos dos astros, das estrelas, da órbita da terra e do relógio continuam. A distância, só por si, já confunde a forma de viver o tempo, este esfuma-se no percurso, e mais longe fica a solução. Diz-se muitas vezes: é preferível “perder” algum tempo, para ganhar no tempo futuro. Até que ponto, com a realidade a acontecer de forma prazerosa em que o tempo parece esfumar-se, que pedir um intervalo, não será um modo de colocar acidez naquilo que era doce, um descaminho para o silêncio, o vazio da ausência, e  nisso a destruição da fluidez do discurso das vontades e razões do desejo e do sentir. O rio não passa duas vezes debaixo da mesma ponte, por isso nada será como antes, e daí, pode resultar numa retoma com perda de tempo.

 

dc  

 

 

domingo, 15 de agosto de 2021

Amor(b)eijo

 

Como se fosse um caminhar, os seus lábios, colam-se em outros lábios, são duas bocas semiabertas, percorrendo distâncias imensas no desfrute das sensações. Envolvem-se as salivas, as línguas se cruzam, em repetições sucessivas; a sensualidade é absurda, as bocas sorvendo, mordendo, se acalentando na respiração, procurando, bem fundo, como se quisessem encontrar a razão, que liga duas bocas se amando. Sem que as palavras se acrescentem, as bocas fazem o caminho para a descoberta do indizível, que nos corpos que se despertam. É uma busca errática e conduzida pela intuição que a proximidade desbloqueia. O que foi princípio, se vai metamorfoseando, com o rolar do tempo, as emoções se esclarecem e a aprendizagem, culmina na explosão dos sentidos; muito mais tarde a serenidade se encarregará de esmerar, revivendo. À superfície chegarão, novos saberes, novas vivências e aromas, as morfologias se desvanecem, fica somente o prazer de sentir o aturdido silêncio, retemperador, depois do êxtase.

 

dc

 

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Quem sabe

 

 

O vento forte adejava as bandeiras, azul, dourada e branca, designando as qualificações da praia. Deitado, de costas para o sol, numa duna próxima da rebentação do mar, esparramava-se na toalha colocada sobre areia e se esmaecia com o calor do sol. Ali, só uma leve brisa corria. O ruído do mar, que à duna chegava, trazia como música de fundo o piar agitado das gaivotas e o vozear das pessoas da praia, embalando-o no berço macio da inconsciência. Sentia o calor adentrando, no seu corpo, num prazer indecifrável, que o deixava incapaz de se mexer. Subitamente uma gargalhada cristalina, rompeu o ar envolvente, indo até ao mais fundo de si e o fez levantar a cabeça, curioso de saber, a origem. Uma jovem mulher, rosto de linhas suaves, cabelo preto e curto, corpo esbelto e moreno, precariamente tapado, por um biquíni preto, destacava-se na orla do mar, onde fazia corridas curtas, recuando, ou avançando, em volteios, brincando com ondas que se desfaziam no areal. Parecia uma criança, chegada do interior, vendo pela primeira vez o mar. Além dos atributos físicos, que despertavam a sua atenção, havia toda aquela alegria surpreendente. A sua gargalhada, foi um canto de sereia que o tirara da letargia. Foi uma resposta a uma pergunta que não fora formulada, e precisava ser encontrada. Há quanto tempo, não sentia tal jovialidade, que o fizesse capaz de fazer coisas inesperadas, como tocar às campainhas das portas e fugir, ou andar de baloiço. Um gesto infantil, como aquele que vira, que lhe retirasse do rosto a sisudez, quebrasse as rotinas e desse fluidez à criatividade, para bem da sanidade mental. Talvez se isso acontecesse, a sua timidez deixaria de ser um travão, ao relacionamento com as pessoas e facilitasse o caminho para uma ética de convivência, e, gazua para conversas frutuosas, prontas para libertar os sentimentos engaiolados. Quem sabe..

dc


sábado, 31 de julho de 2021

Entre lá e cá

 

Só nos apercebemos que a vida nos envelhece, quando acordamos para o dia com esperança de que o inusitado aconteça, quebre a rotina e que o lugar dos sonhamos se torne a realidade futura. Talvez até, que aquele sentimento, a que alguns, mais conhecedores, chamam de amor, surja num piscar de olhos, ou num sorriso vindo do nada, e o possamos sentir bem fundo. Ao olhar aquele corpo jovem com colar de pequenas pérolas, desenhando o colo do seu pescoço esguio, ele se pergunta, porque não eu, ser razão merecedora do seu olhar do seu desejo, da sua alegria e presença na sua vida? As pérolas que no peito baloiçam o hipnotizam, durante breve instante. Entre a vontade, o desejo e as subtilezas da esperança, adormeceu, inclinando a cabeça sobre o peito, ao jeito de corpo morto e tudo se confundiu numa espécie de limbo, sem que a materialidade se tornasse palpável.
As ondas vão-se espraiando no areal e o vento forte traz os borrifos, que caem sobre o seu corpo despertando-o. Absorto olha em volta, o areal está deserto, esfrega os olhos enquanto pensa que faço aqui só?

 

dc

 


domingo, 25 de julho de 2021

Noite de lua cheia


Chegou de mansinho, pé ante pé, dominando o fim do dia. Olhei o telhado, não havia gatos, nem uivavam os lobos, era mais uma lua dos namorados, que nas mesas se enredavam de braços, pernas se tocando e ameaças de beijo. Os sorrisos mais que muitos, e entre o lusco-fusco da mudança da luz derramavam segredos, em conversas, pé de orelha. Fiquei na dúvida, se seria a lua a razão do que acontecia, ou se a lua só vinha fechar o dia. O sol se fora e a noite ainda não escurecida, servia como espaço etéreo, para os felizes que adoçavam o seu mundo.

 

dc


sábado, 24 de julho de 2021

Fim de tarde

Sonhava-lhe a boca, como os dedos flutuando sobre o corpo, causando o erótico subversivo. Olhava-a no fundo dos olhos e devassa-lhe o desejo, adentrando pelos interstícios e reentrâncias, no espanto da descoberta. O corpo tem uma morfologia própria e um odor que o faz um ser único. Essa identidade, que o transforma num ser apetecível à osmose, à sintonia que seduz quem vê, sente e cheira e o distingue entre os outros e cria memórias eternas. Assim reflectia e apurava os sentidos, olhando para além de mim, esperando que chegasse, focado no horizonte longínquo de fim de tarde, mitigando a saudade.

 

dc


segunda-feira, 19 de julho de 2021

Talvez o (a)mar



Esse teu sorriso iluminando o rosto seduz-me, é suporte deste meu desejo de esperar o reencontro. Escassos são os dias, que não fico, observando imagens do teu rosto; os teus contornos, as sobrancelhas, as pestanas, a cor dos teus olhos, a tua boca, o cabelo que o adorna. Chego até a imaginar, o modo como respiras, quando a emoção se adentra fazendo dilatar o peito num suspiro profundo. És uma musa que me traz ao pensamento e à boca as palavras, que guardadas se perderiam do seu sentido. És um sonho à luz do dia que se prolonga e atordoa vindo da noite agitada. Chegas assenhorando-te, da minha atenção, alimentas a minha criatividade, fazes o relógio mudar todo o seu significado do tempo e do verbo existir. És uma memória que não descortino a origem, de facto é como sempre existisses em mim, como o sangue que me circula nas veias. Perder-te seria como plantar vazios, em vez de flores, no jardim da vida. Talvez o (a)mar, talvez o sol, ou a brisa do fim de tarde, trazendo o aroma do pinheiro-manso e o silêncio dentro de mim, me tenham libertado para este meu dizer.

dc


quinta-feira, 8 de julho de 2021

Acontece



Na agudeza dos problemas da carne, ficam os sentimentos desvairados que ocorrem quando de longe se observam os efeitos. Ficam os olhos envidrados, a voz sufoca, a mente se treslouca e o porvir inadivinhável. Então tudo se dilui em foguetório sem blindagem, de bocas que se sufocam, corpos que se entrelaçam, num descaminho de emoções, onde nada prevê as consequências. Usufruir enquanto dura, sem criar barreiras ao pensamento e ao evoluir das emoções. Sem comprometimentos, colorir quanto possível, ausentes de objectivos e muito menos certezas. Começou e foi indo até onde deveria ir, com fim imprevisível, aproveitando a viagem que leva o mundo da imaginação ao mundo físico, provando todas as variações que os corpos se dispõem liberar. Mais do que trocar carícias e fluidos, é trocar integridades, num erotismo sénior, dando largura à vida e profundidade à existência. Viver a idade sem estorvo do calendário.

 

dc

segunda-feira, 5 de julho de 2021

Também o medo

 


Os “mortos” colocaram as máscaras para se simularem vivos. No lugar dos olhos, existe um buraco fundo onde se escondem as palavras, que os mortos não pronunciam. Uma vida que se gasta na espera que o medo se vá, que morra, e as ausências se percam pelo tempo. Incapaz de enxergar o rosto dos outros, fica-se por um pensar tolhido pelo medo. Muitos se afastam, cruzam as ruas de um lado ao outro, mudam de passeio, fogem das pessoas. Fechados ao amor, perderam-se de abraços, de beijos e carícias, enleiam-se em cansaços, em correrias e regras absurdas sem sentido. Pensar é proibido, deram aos outros a força de decidirem por si, mesmo que com voz de falsete, ou em vozeirão de sabedoria feita que ninguém questiona. Pressinto o absurdo, a desculpabilização futura, quando o estrago se evidenciar na humanidade perdida, e os autómatos começarem a fazer sombra naquilo que fomos e não voltaremos a ser. É certo que a “normalidade”, será uma outra, como sempre acontece, até se tornar comum, convivermos pacificamente com aquilo que se alterou. As elites terão humanos ao seu serviço, médicos, “personal trainer”, massagem e empregados vários, os pobres terão robots, internet para se comunicarem e até fornicarem. Não estamos todos no mesmo barco, alguns têm o iate, muitos outros nem jangada. Entretanto, pacificamente, vamo-nos assumindo como responsáveis, censurando-nos a nós próprios, “cidadãos que se creem livres” adaptando-nos cada vez mais, à figura de não sermos ninguém, mesmo quando a nós, cabe decidir, a quem dar a força de decidir por nós. Aceitamos mutações e outras explicações para tudo, sem que se permitam a um fim, prolonga-se a agonia, não se vai do mal, vai-se pela cura. Se houver futuro, não telecomandado, talvez a verdade surja, caso contrário passará para as calendas gregas. Atordoados, pressionados com as falas mediáticas, que plantam o medo, passamos ao lado dos movimentos de nucleares exércitos, com nucleares engenhos que se passeiam a descoberto pelo espaço europeu, com beneplácito dos governos, em exercícios, sem aviso prévio, enchendo mares, calcorreando estradas, voando pelos ares, simulando o terror, fazendo-se salvadores de males maiores, relativizando o perigo e esquecendo o passado de Hiroshima e Nagasaki, e da actual Central Nuclear Fukushima cujo o acidente nuclear de grau elevadíssimo, cujos resíduos a deslocar para o alto mar, que podem pôr em causa a natureza e a vida das pessoas. Acredito na ciência que aprende com a natureza e nos ajuda, a com ela evoluirmos, mas não quando está contra ela e ao serviço de fins inconfessáveis. Também o medo terá de se ir. Só poderei dizer: não temo a morte, se me tiram o prazer de viver.

dc

 

     6. Apelar para as emoções
     As mensagens que são projetadas a partir do poder não têm como objetivo a mente reflexiva das pessoas. O que eles procuram principalmente é gerar emoções e atingir o inconsciente dos indivíduos. Por isso, muitas dessas mensagens são cheias de emoção.

     As terríveis 10 estratégias de manipulação massiva, reveladas por Noam Chomsky

     020-11-09

        A absoluta contaminação mediática pelas informações (e desinformações) associadas   à COVID-19, alimentando o clima de pânico entre as populações, tem ainda outro efeito perverso: omite às mesmas populações outras situações igualmente graves e que têm todo o direito a conhecer. Uma delas é a escandalosa decisão do governo do  Japão e da empresa que gere a central nuclear de Fukuxima de lançar no mar mais de um milhão de toneladas de águas radioactivas originárias dos reactores fundidos na catástrofe de 2011. Águas que entrarão na cadeia alimentar de milhões e milhões de  pessoas. Um acto criminoso que apenas engrossa essa pandemia esquecida: a de índole nuclear –civil e militar.

        Manlio Dinucci, Il Manifesto/O Lado Oculto