domingo, 31 de março de 2019

A mulher que ouvia as gaivotas


Adorava aquele movimento das pessoas, no seu vai e vem, uns correndo outros caminhado, as bicicletas circulando rente a eles, alguns namorando, a algaraviada do “turistame” e as crianças nos baloiços brincando. Ela não os ouvia propriamente, ela sentia-os como música de fundo melhorando a sua audição especial para com os outros seres.
Olhavam-na, e se calhar pensavam, que escolhera estar ali na margem da foz do rio, para poder ler em sossego. Na realidade, ela tinha o livro aberto para que as pessoas não se apercebessem que ela estava ali a falar com as gaivotas, as pombas e com os patos, enquanto estava atenta ao que o rio lhe dizia, naquele seu marulhar ao longo das margens. Ao levantar os olhos do livro, pareceria estar a descansar os olhos da leitura, mas na realidade era uma pausa simulada para que não reparassem nela de forma estranha. Enquanto ouvia dentro de si própria, aquela gaivota que está gritando às outras dizendo-lhes que há peixe miúdo ali entre as rochas, as pombas aborrecidas a reclamarem que elas sãos umas chatas, que lhes roubam o pão e o milho que algumas crianças trazem para elas, os patos estão sempre na deles, adormecem, passeiam e não se incomodam. Ah, ainda não falei dos peixes, que ali no rio se passeiam, rindo à gargalhada pelas partidas que pregam aos pescadores, passeando-se, entre os anzóis, roubando-lhes o isco, e depois em cardume empurram a bota velha para o anzol. Eles são os que mais me divertem, quando aqui estou sentada, eles fazem-me sorrir sozinha parecendo uma doida.
Neste domingo, embora na véspera do dia de enganos, não estou aqui, mais uma vez, um par de horas por engano, mas “enganando” e colhendo benefícios, repetindo a dose desta droga natural que apura a minha qualidade de vida e a imunidade para com as doenças da chamada modernidade e civilização.

dc



sábado, 30 de março de 2019

Incrível amor


Sentado, como sempre tomando a minha meia de leite e comendo a regueifa com manteiga, ia olhando para as páginas do livro à minha frente. A certo momento levantei os olhos e fiquei fascinado com o que se passava numa outra mesa, no lado oposto da sala.
O aspecto era de dois octogenários, vestidos de modo simples, de rosto marcado pelo tempo, mas com um aspecto suave e olhares carregados de ternura, que davam as mãos, sobre a mesa. Ela segura-lha as mãos e ia dizendo algo não audível e ele respondia sorrindo. Por vezes ela soltava uma das mãos e fazia-lhe uma carícia na face, como se de uma pena se tratasse. Em outras dava-lhe pequenas palmadinhas na mão, ou até lhe agarrava uma das mãos e a outra por baixo do queixo e observando a sala, como se fizesse uma paragem algures no seu interior. Tal impressionou-me, que chamei uma das empregadas já habitual e lhe perguntei, se tinha reparado na beleza daquele quadro que surgia aos nossos olhos. Ela brincou do género “está a ver o amor”, era isso que também queria? Uma outra empregada se abeirou e esclareceu: “Aquela senhora tem Alzheimer em último grau, a única coisa que ela reconhece é presença do seu marido e o caminho para casa”. Perante a minha admiração ela acrescentou; Ele pede-nos sempre que se afasta para fumar ou ir à casa de banho que tomemos conta dela, porque ela não se lembra se estava com ele e vai logo para casa. E acrescentou “ele adora aquela senhora e estão sempre assim, ele é super carinhoso”. Tocou-me fundo. Pensei que aquela doença tem particularidades que desconhecia, até sei que as pessoas vão perdendo as memórias e referências, não sabia é que o amor e o contacto entre si, podiam ser ainda uma forma de a manter ligada ao mundo. Possivelmente, como quando as pessoas se embriagam, o que vem à superfície, na maioria dos casos, é aquilo que as pessoas são na realidade. Naquele casal, possivelmente a doença ia minando o cérebro daquela senhora, mas certamente a última coisa que ela perderia seria o seu amor. Muito estará por saber afinal, sobre o que está para além dos efeitos da doença e que tipo de realidade vivem as pessoas que se vão morrendo neste percurso, percurso este, mais doloroso para os outros que presenciam do que propriamente para o doente.
Uma coisa me tocou, falavam com as mãos, tocavam-se com os olhos, estavam como parados num tempo e espaço, um e outro no seu papel, mas ambos humanos. Hoje muitas vezes acontece um Alzheimer tecnológico, onde dois se perdem não no caminho das memórias, mas do registo da sua humanidade, como seres que não se comunicam, por gestos ou palavras, palavras e ternura.


dc

Preliminares



Molhada se agita
Ponto na ponta
Na gruta infinita
Vezes sem conta

Construindo círculos
Ou procurando mais fundo
São poemas e versículos
Na boca do fim do mundo

Molha-se o molhado
Para começar
Goza-se o gozado
Sem querer acabar

O rio desce da nascente
Até à foz do linguarejar
É cada vez mais urgente
Algo mais nesse lugar

No meio está a virtude
Que o prazer entontece
Sem distância ou latitude
Todo ele se engrandece

Misturam-se as águas
O rio chega à foz
Acabam-se as mágoas
Falam numa só voz.

dc







quarta-feira, 27 de março de 2019

Todo o espaço é caminho



Só, agarro-me a este espaço onde o silêncio me permite observar o mundo com distância necessária ao juízo da realidade.

Aqui permito-me sonhar, sem sentir o ruído e o cheiro nauseante da cidade e sua intensidade.

Leio e nas palavras o conforto de não estagnar no amorfismo da linguagem que as vozes correntes trazem.

Não procuro estradas para viajar todo o espaço é caminho.

Neste lugar é meu corpo um objecto de paragem, sem perturbação dos sentidos, e viajo com as aves tão próximas que lhe tomo as asas.

Penso-me livre e capaz de voar no céu infinito que se me depara, mesmo quando pretendem que as grades me prendam.

dc