sábado, 30 de março de 2019

Incrível amor


Sentado, como sempre tomando a minha meia de leite e comendo a regueifa com manteiga, ia olhando para as páginas do livro à minha frente. A certo momento levantei os olhos e fiquei fascinado com o que se passava numa outra mesa, no lado oposto da sala.
O aspecto era de dois octogenários, vestidos de modo simples, de rosto marcado pelo tempo, mas com um aspecto suave e olhares carregados de ternura, que davam as mãos, sobre a mesa. Ela segura-lha as mãos e ia dizendo algo não audível e ele respondia sorrindo. Por vezes ela soltava uma das mãos e fazia-lhe uma carícia na face, como se de uma pena se tratasse. Em outras dava-lhe pequenas palmadinhas na mão, ou até lhe agarrava uma das mãos e a outra por baixo do queixo e observando a sala, como se fizesse uma paragem algures no seu interior. Tal impressionou-me, que chamei uma das empregadas já habitual e lhe perguntei, se tinha reparado na beleza daquele quadro que surgia aos nossos olhos. Ela brincou do género “está a ver o amor”, era isso que também queria? Uma outra empregada se abeirou e esclareceu: “Aquela senhora tem Alzheimer em último grau, a única coisa que ela reconhece é presença do seu marido e o caminho para casa”. Perante a minha admiração ela acrescentou; Ele pede-nos sempre que se afasta para fumar ou ir à casa de banho que tomemos conta dela, porque ela não se lembra se estava com ele e vai logo para casa. E acrescentou “ele adora aquela senhora e estão sempre assim, ele é super carinhoso”. Tocou-me fundo. Pensei que aquela doença tem particularidades que desconhecia, até sei que as pessoas vão perdendo as memórias e referências, não sabia é que o amor e o contacto entre si, podiam ser ainda uma forma de a manter ligada ao mundo. Possivelmente, como quando as pessoas se embriagam, o que vem à superfície, na maioria dos casos, é aquilo que as pessoas são na realidade. Naquele casal, possivelmente a doença ia minando o cérebro daquela senhora, mas certamente a última coisa que ela perderia seria o seu amor. Muito estará por saber afinal, sobre o que está para além dos efeitos da doença e que tipo de realidade vivem as pessoas que se vão morrendo neste percurso, percurso este, mais doloroso para os outros que presenciam do que propriamente para o doente.
Uma coisa me tocou, falavam com as mãos, tocavam-se com os olhos, estavam como parados num tempo e espaço, um e outro no seu papel, mas ambos humanos. Hoje muitas vezes acontece um Alzheimer tecnológico, onde dois se perdem não no caminho das memórias, mas do registo da sua humanidade, como seres que não se comunicam, por gestos ou palavras, palavras e ternura.


dc

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