terça-feira, 29 de novembro de 2022

Talvez seja...

Eu sei que precisas de mim, que não vives sem a minha presença na tua vida. Quando, por alguma razão me ausento, ficas frio incomunicável, vazio, silencioso. Os teus olhos perdem o brilho, a tua boca é uma linha que não se desmancha, as tuas mãos ficam geladas, os teus braços não reconhecem o prazer dum abraço. A tua criatividade esmorece, nada do que produzes tem alma, nada te satisfaz, és uma página de rascunho permanente. Sem mim não destrinças, na guerra dos sentidos, a paz da agitação. Tem vezes que te desculpas, justificando, não quereres mais sofrer, sendo preferível a abstracção. Dizes para ti próprio, que assim, evitas a tristeza, que a minha ausência traz ao teu crescimento. Covardemente, foges daquilo que eu te dou, tens medo do engrandecimento e da nobreza dos sentimentos que desperto em ti. Esmagas-me com a mesma fúria com espezinhas as folhas secas, que no chão o outono deixou, nessa raiva de saberes o quanto sou importante. Temes ouvir o meu nome, evitas que seja pronunciado e o que ele representa, mesmo sabendo tu, quantos o usam, na sua forma de estar neste mundo, partilhando-o e sentindo a felicidade de o possuírem. Contrariando esse teu pensamento, procuro que reflictas, se vale a pena fugir de mim, eu tão simples, como as quatro letras que fazem meu nome, mas que não deixará de te motivar, surgindo no deitar das noites, como um mantra que se repetirá e te ajudará a adormecer, colando-me assim aos teus sonhos, como a tua sombra até que novamente, faça parte intrínseca de ti e do teu vocabulário de existir. Talvez seja dor, talvez seja pieguice, talvez seja amor

 

dc

 


domingo, 27 de novembro de 2022

Resistir, resistir sempre

 


Alimentamos fantasmas, esgotando a capacidade de entendimento. Procuramos razões, fugimos de nós, sem saber onde tudo começou e acabou, desviamos os olhos e o pensamento, para o lugar das flores, na espera de que o seu aroma nos distraia, da sujeira que nos rodeia, como paliativo, ou disfarce, da precariedade em que vivemos e das dores que somos tomados. Torna-se difícil tolerar, os que usam o poder, para nos enganarem, dizendo que estão do nosso lado. Levam-nos ao extremo das dificuldades e depois tentam corromper-nos a moral, dando o dinheiro que nos foi roubado. Eles preocupam-se com os outros, em guerras e terras distantes, e esquecem-se daqueles que diariamente são espoliados na sua casa. Não é o povo que faz as guerras, permite o enriquecimento dos bancos, e dos oligarcas, ele só conhece uma coisa, o trabalho e ter de lutar diariamente, desde que nasce, para possuir algo que minimize as más condições materiais, culturais e de saúde, necessárias à sua subsistência. Continuamos, resistindo e persistindo em contrariar esse, quase destino, acreditando que um dia, com o esforço comum dos povos, possamos impedir que parasitas nos governem, e poderes subterrâneos imponham as suas vontades.

dc


terça-feira, 15 de novembro de 2022

Sem seguir o rebanho


A voz se perdeu, especialistas consultados, não lhe encontram solução. Dizem as más-línguas, que são as falas guardadas, as desculpas não expressas, os remorsos, a depressão, as dores não explicitadas toda uma série disparada de motivos. Adivinham-se médicos, das maleitas dos outros, como se treinados pela experiência da cura das suas. Não entendem a natureza humana, da perda da vitalidade do corpo, do cansaço do uso, do arrastar das memórias, da pressão dos dias e da vivência. Filósofos da vida alheia, de uma penada, dão sugestões de cura, opinando, como agora é comum fazer-se, mesmo desconhecendo, ou investigando sobre. Felizmente, que a persistência, o acreditar que a mudança, ainda tem espaço para acontecer, que não existem limites para o sonho, para os projectos e realizações, que se sobrepõem ao cansaço das vozes dissonantes e patéticas de figuras do nada.

dc


segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Uma pausa necessária


Conversador e ouvidor, agora, só tinha o silêncio, o seu silêncio. O ruído existe nos outros e no que o rodeia, mas está fora de dele. Não assimila ruídos, nem imagina ruídos. Os seus tímpanos estão cobertos de cera da indiferença à escuta. Sente-se um surdo de nascença, que lê nos lábios, vê gestos, talheres que se cruzam, pratos que se chocam, copos que se tocam, bocas que se movimentam, beijos de diferentes intensidades, mãos que se agitam, sorrisos e pretensas gargalhadas. Sente uma ausência tamanha, como se estivesse suspenso sem gravidade, estava, tal qual, no cinema mudo de outrora. É uma total ausência de estar, uma suspensão de vida, é um silêncio de necessidade, que ninguém interrompe, que o faz fechar a boca e não pronunciar qualquer ruído. É bem possível, que o motivo esteja errado, ou seja, o receio de falar sem acerto, que o faz isolar, sem dizer aos outros que não está comunicável. Tem de fazer uma pausa para se reencontrar, descobrir como falar correto, sem magoar, ofender, ou alimentar debate inútil do saber, ou de ter, a pretensa razão. Precisa do estímulo certo para um dia voltar aos ruídos, às palavras e à escuta, que por agora enfadonha e um pouco desestimulante, lhe tirou a curiosidade, a paciência e o prazer da conversa.

 

dc

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Na sozinhês do banco de jardim



Gosto de me esperar, único, na sozinhês do banco de jardim. É domingo, a manhã está amena. Observo de modo meditativo, as árvores e as flores sobre o jardim, os pássaros, que neste meu esperar silenciado, me acompanham com o seu cantar melodioso, e não sabem, muito menos, adivinham, o quanto me fazem companhia e alegram. Fascina-me a sua graciosidade, o seu saltitar, nervoso e dinâmico, sobre o tapete de relva, ou o seu voo fugaz para a árvore mais próxima. Todos parecem iguais de morfologia, mas distintos na cor e desenho bem diferenciado, como que cada uma das suas “famílias” se identifica. O melro, que do preto só se distingue o seu pequeno bico e as rosadas patas; o pintassilgo de roupagem colorida, a poupa, encristada em cores sóbrias, a pomba acinzentada que parece ronronar, o raro canário amarelo de cantar distinto, e nos dias de hoje a predadora gaivota, fugida do mar e das docas, se passeia pela cidade, onde esgravata dos seus lixos abandonados, na busca de comida que no mar já não encontra.

Tudo isto neste esperar pacífico, onde estou, tal estátua, indiferente para quem me vê. Invisibilidade que leva ao engano, a pomba breve junto aos meus pés e o cão surgido, que se encosta de necessidade na minha perna, logo fugindo de espanto perante o meu prolongado, shiiitttt. Chegam até mim, trazidos pela brisa, aromas dos diferentes comeres das casas próximas, vêm enunciando, o menu melhorado, domingueiro. Vêm matizados com os odores do jardim, uns de refogados de cebola, estalando, outros de assado de carne melhorado, ou peixe grelhado. As vozes das gentes, que ali habitam, diluem-se em murmúrios entrando pelos ouvidos, rompendo o ar com facilidade. Enquanto isso ruídos dos carros da cidade se esbatem na lonjura. Adivinho naquelas casas, os banhos matinais domingueiros, apurados pela ausência da pressa, as barbas que se desfazem com cuidado, as mulheres que se perfumam e cuidam do seu rosto. Todos escolhendo cuidadosamente as roupas que saem da rotina do trabalho e surgem como a estrear. Como se à missa, todos tivessem missão por ir. Também posso lobrigar, muitos outros que se aproveitam, do lazer possível, e desfazem o tempo como lhes apraz, abandonando-se num desmazelo procurado, de indolência, tudo feito a desoras, distraindo-se a ver televisão, ou até um possível sexo gostoso e assim quebram a rotina do trabalho da semana.

Sinto-me num domingo adormecido, como aqueles que premeiam a Páscoa de todos os anos, com nuvens que se misturam na leveza do céu, brancas e cinzentas, que o sol vai furando em entretantos. Este é um domingo sem falas, nem interrupções, neste meu observar e pensar, onde também eu me cuido estando só.

 

dc


terça-feira, 27 de setembro de 2022

Ausência

 

Acredito que a saudade não mata, caso contrário há muito estaria morto, tal a falta que me fazes, a cada minuto que o calendário vai levando da vida.

dc


segunda-feira, 5 de setembro de 2022

O sapo nem tempo teve de virar príncipe.

 


Os olhos brilham, um meio sorriso aflora-lhe os lábios cor de rosa, mostrando levemente os dentes certos e bonitos. O cabelo loiro, quase branco, encaracolado e comprido, cai-lhe sobre os ombros. Tem um casaco de malha cor rosa, muito suave, que a veste por cima da camiseta, aconchegando o corpo.
O almoço depois do banho de mar, num pequeno restaurante, acompanhado de vinho branco e sobremesa, desenrolado com agradável conversa, deixou-os leves e bem-dispostos. Pagam e saem.
Vão passear num pequeno jardim próximo, quando chegam, poucos passos andados, ela coloca a écharpe, de tecido leve, sobre o chão e deitam-se nela, sobre a relva. Olham o céu azul sobre as suas, cabeças bem próximas sentindo o vibrar dos corpos, com risadas e disparates que vão dizendo, vivem o momento. Sente-se a intimidade e a liberdade de estar, a alegria diz-lhes que o tempo não existe. O mundo pára em redor, só eles, são, o restante é cenário a compor a imagem.
Podia ter sido para sempre, mas ficou por aí, tal é o medo que se gera quando nos parece bom de mais. Naquele jeito bem português de ter medo de viver a felicidade quando esta nos toca, logo se foram inventando, ou desconfiando razões, matando desde logo, a probabilidade, sequer, de poder dar certo. Encontram-se logo prumos, paredes, materiais de isolamento do quotidiano, do passado, de uma outra gesta e usam travões às quatro rodas levantando os obstáculos, que nem sombra fazem no chão.
Saíram do jardim, os óculos escuros fixaram-se na cara, o negro visível fechou as portas ao futuro. O sapo nem tempo teve de virar príncipe.


dc


quarta-feira, 24 de agosto de 2022

A tua boca

 


A tua boca é sempre o esboço do que está para chegar, é o prelúdio, de um prazer maior, é um registo que se cola na memória da pele, que nos deixa o sabor a pouco, do muito que ansiamos ser feito. Tantas vezes, somente um toque suave dos lábios e outras tantas, com a humidade das línguas se tocando tacteando vontades, descobrindo outros lugares de resposta do nosso corpo, satisfazendo desejos, abrindo caminho a lonjuras maiores, a afinidades subtis, a cheiros e registos eternos, que serão memória e saudade, segundos após se realizarem.

 

dc

 


segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Além das aparências


Sabia que ela era uma mulher, da área das leis e muito responsável, que trabalhava imenso, sem perder o foco. Quase diria obcecada, atitude essa, onde não sobejava tempo, para ter, o seu próprio tempo. Esse seu modo de ser, levava-o a pensar, se não seria por ela temer, voltar a envolver-se física e emocionalmente com alguém; uma espécie de fuga para a frente, evitando confrontar-se, ou de libertar-se, dos espartilhos que a si própria colocava. A ser assim, difícil seria encontrar o amor que tanto ansiava, ou melhor, procurava alcançar. E seria bem possível, que o outro, nela interessado, se lamentasse: preferindo que fosse uma ladra habilidosa, sem medo de ser presa, fazendo tudo, para o ter sempre perto dela. Atrevia-se a pensar, se realmente, alguma vez, ela teria arriscado, a conhecer efectivamente alguém, a sério. Temeria enganar-se na escolha, na expectativa, na figura de preferência, como se na escolha do vinho, no vestido inadequado, do sutiã fora de tempo, ou sem ele? Quantas vezes, teria ousado, usar a linguagem mais vulgar na intimidade da cama, dando azo à imaginação, despida de pruridos balofos, deixando o corpo surfar na onda do desejo, sem medo do que o outro pensa, deixar que aconteça, sem perda de tempo, sem julgar o que ainda nem começou? Alguma vez aconteceu o beijo espontâneo, a mão que acaricia, debaixo da mesa, quando os olhos sorriem marotos? Alguma vez, andou pelas ruas, de mão enfiada no bolso traseiro das calças dele e ele nas dela, rindo pelo prazer, da intimidade do gesto, no aconchego de sentir os dedos na carne?
Sem erros, a realidade seria sensaborona. A fatídica certeza, traria a loucura, seria ausente do prazer da aprendizagem, nos diferentes obstáculos no caminho que se percorre, ou do gozo da concretização, ao alcançar objectivo traçado e o sabor da sua conquista. Somos vítimas, de prisões intelectuais, do sistema ridículo, que nos impõe as cadeias de comportamento social, que nos diz o que devemos, ou não, fazer. Tememos o julgamento dos outros, deixamos de ser quem somos, para sermos aquilo que os outros propõem que sejamos, mesmo quando nos apetece correr pelas ruas à gargalhada, ou balançando os braços de mão dada, como se pêndulos, brincando a embalar o amor que nos domina. Tantas são as vezes, que nos apetece sentar no baloiço da nossa infância, sem receio da idade, ou vergonha, que nos limite, e vogar naquele vai e vem que nos tira os pés do chão, para podermos sonhar. E, porque não?


dc

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Na praia a sós


Lado a lado de mão dada, vamos andando para o longe; vagueando, tacteando o chão de areia, que se afunda sobre os nossos pés. Vamos ao encontro de um espaço vazio, longe de outros olhares, que não aqueles que devotamos a nós próprios. Fugimos do rectângulo diminuto que nos sobeja, onde proliferam os guarda-sóis, os corpos esparramados, preenchendo o areal, como se não houvesse amanhã, e, da escuta cusca, ou da agudeza, rebarbativa, de algumas conversas pessoais, das quais teremos de ser ouvintes forçados. É a busca consciente, dum espaço, outro, que nos permita o silêncio, ou somente o som das nossas vozes. Queremos ficar libertos do espartilho das vestes e de acessórios desconfortáveis. Ali, nesse lugar de nenhures, onde a natureza é um delicioso lugar de estar, que nos liberta os sentidos, onde se pode gritar em voz alta o que cada um sente. Ali, os corpos com as costas tocando a toalha imensa da praia, expondo a nudez do corpo e da mente, sobre o sol escaldante e onde pudemos banhar o corpo na água do mar, como recém-nascidos. O tal lugar, onde os corpos não são vítimas de escrutínio estético, alheio, se podem beijar e tocar, ou até se permitirem a que o amor se faça, com a mesma fluidez, com que a água do mar banha o areal. Depois, perdida a noção temporal, será o fim de tarde, se arrastando, que nos dará a noção do regresso ao lugar de partida, acompanhando a retirada do sol, que vai repousando na linha do horizonte, para o descanso do dia.

 

dc

domingo, 7 de agosto de 2022

A dúvida


Naquele primeiro encontro, fora das convenções, não sabia, se fizeram amor, ou simplesmente sexo empenhado, saboroso, requintado. Fizeram-no, foi bom e pronto, para quê avaliar muito mais. Fizeram-no repetidamente ao longo daquele dia, como nos tempos posteriores, que estiveram juntos, sem limitações, descobrindo, apreciando cada bocadinho de si. Não seguiam o Kama Sutra, mas alimentavam as tempestades e repousavam na bonança. Conheciam os seus cheiros, no cio, ou fora dele, saboreavam cada interstício de pele, sem medir o tempo, sem amanhã. Jogavam bem naquele campo, sem domínio absoluto de nenhuma das partes. Era uma parte óptima dos dois. À partida ambos embarcaram na aventura da descoberta, empolgados, confiantes, sem muitas palavras, deixando as emoções dominarem, sem sentirmos ser preciso saber algo mais. Foi “amor (?) à primeira vista”. Se assim foi, nasceu cego, que nem intuíram sequer, possíveis in/compatibilidades, nem naqueles pequenos nadas que iam surgindo nas conversas que versavam temas fora do leito. Pareciam temer revelar-se, como se fazê-lo fosse uma disputa de razões, ou que teriam de pensar igual. Conquistar o presente, alimentando projectos com vista o futuro, parecia ser assustador. Ambos sabiam, que somente os “jogos de cama”, não seriam suficientes para alimentarem o que acontecia, que para durar e ser real, seria necessário “primeiro fazer a cama para nela se deitarem”. Poderiam até aceitar, que bastava o que tinham, necessário era assumi-lo. Esta era uma outra tarefa difícil de levar a bom porto, nenhum queria admitir ser somente sexo, porque temiam fosse mais que isso, fugiam de aceitar que teriam de mudar alguma coisa, para que a perenidade do que existia tivesse mais substrato e se tornasse duradouro. Partir deixaria dúvidas, ficar exigia compromisso, reconhecer que algo mais acontecera. Simultaneamente, num coro a duas vozes, surgiu a pergunta, e agora?

 

dc

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Na busca da diferença

 


Queria apanhar o sol, deitando-se na linha do horizonte. Queria fixar os últimos instantes do dia com a sua cor quente e as alterações da sua forma, conforme se vai sumindo aos nossos olhos, como sempre faz, num esconde, esconde, entre o dia e a noite. Não fujo à regra, sinto o fascínio do comum dos mortais, perante este fenómeno, mas queria buscar a diferença, para que este momento fosse só meu, que a escolha tivesse o meu toque, o meu enquadramento, fosse o meu sol. Nesse procura de captar a melhor imagem, que já em outras alturas tentei obter, fui fazendo sucessivos disparos, quando de repente uma ave que desconheço o nome, talvez pressentido a minha motivação, resolveu ajudar, colocando-se no lugar certo, para equilibrar a composição e enriquecer o momento. Fico grato por tal ajuda, que me encheu o peito de alegria e vaidade pela sua parceria, que decidi publicar a imagem.

 

dc

domingo, 31 de julho de 2022

Passeio no areal


Passeio-me pelo areal, fujo de mim, atordoando-me com o som do mar que se agita e se engrandece, perante os meus olhos que o vão observando, temeroso da sua força que tudo derruba e do seu fascínio, que nos coloca na vontade de nele entrar, derrubando ondas, correndo o risco de nele ser retido. Fico-me pela tentação e bordejo o derramar das ondas no areal, apagando as pegadas que vou deixando, anulando o rastro da minha passagem, ausentando-me, como se desenhos a giz num quadro preto.
Vou colocando um pé a seguir ao outro, sem pensar que o faço. Eu estou caminhando no silêncio interior. Não determino, nem distância, nem tempo para ali estar, somente esmagando a areia com os pés, como acupuntura, para recuperação do corpo e da mente.
Nem todos procuramos o mesmo. Essa é a riqueza da vida. Aqueles que eu observo, quando passo, homem e mulher, não estão na mesma onda. Chegaram ao areal, vestidos de traje completo, foram para perto do finalizar da onda molhar os pés, sorrindo e olhando-se, como se procurassem baptismo para o seu nascer de amantes, o mar premiou-os com o seu brilho.

 

dc

 

 

 

sexta-feira, 29 de julho de 2022

"Ver" com os dedos

 

Tocou a superfície fria, lisa, acetinada, sentia-lhe as formas arredondadas, o volume dos lábios, as reentrâncias do cabelo e dos olhos. Enquanto isso, a sua voz ia relatando, o que sentia na polpa dos dedos. O mármore branco, falava dum mundo com cores. A cada peça tocada, sentia-se-lhe a vibração na voz, tal era a forma intensa com que descrevia cada pormenor e o seu significado: que rosto tão suave! Que boca tão perfeita! Oh! Que rosto tão redondinho, é um menino!? Como é possível esculpir tal beleza? Rosa, invisual desde criança, agora já adulta, naquele momento, apreciava um busto de criança. A sua descrição pormenorizada e emocionada, era o retrato fiel do que eu via, seu acompanhante, que com mais alguns alunos do curso de pintura, voluntariamente nos dispuséramos para aquela visita guiada, para invisuais, no Museu do Escultor Teixeira Lopes. Foi um sábado memorável, uma das mais enriquecedoras experiências para nós, jovens, que queríamos aprender a arte de esculpir e pintar. Percebi aí, que para ser um artista, teria de possuir uma leitura e sensibilidade para além do visível. Aprendemos, que na ponta dos dedos, havia mais sensibilidade e percepção à flor da pele, do que nós de olhos abertos, sem a arte, de saber tocar. Se para ela, um sentido não existia, todos os outros estavam bem mais latentes e enriquecidos. Quase apetecia dizer, que deveríamos aprender de olhos fechados, antes de nos atrevermos a mais.

 

dc


domingo, 24 de julho de 2022

É bom não ignorar


Ignorar quem nos ignora, é fazer prevalecer o respeito por nós próprios. É um caso para registar, quando alguém passa por nós, neste rodízio da vida, com ar compenetrado, olhar alongado na distância, quase roçando o nosso corpo, naquele ignorar “involuntário”. É bom não ignorar quem nos ignora, ou tenta passar despercebido, mesmo quando passa pela nossa frente e o resto do mundo estivesse para além das nossas costas. Quem nos ignora, informa quanto à sua identidade e caracteriza a sua tipologia como pessoa. Não deve passar em branco, àquele que é ignorado, a conduta do outro. O ignorar desse outro, pode ser uma espécie de provocação, que muitas vezes tem um efeito contrário. Aquele que em mim não repara, quer que eu fique atento à sua visibilidade, quando sou invisível aos seus olhos. A resposta ao seu ignorar, é nos fazermos notados, saudando, sorrindo, enfrentando, questionar quem não quer ser questionado e queria fazer-nos ignorados, depois, depois rodar, dando de costas, caminhando para um outro lugar, onde o cheiro da falta de ética não tresande.

dc


terça-feira, 12 de julho de 2022

Amo o mar

Imenso o verde-azul, que adentra nos meus olhos, é, talvez, a fala da origem que me toca a alma. Ondas sonoras e de massa líquida, surgindo das profundezas, misturam-se com o piar estridente das gaivotas, que vão observando e aflorando a superfície com voos rasantes, numa conversa celestial com os meus sentidos. Vindos do mar, somos preenchidos por uma massa de água, formatada em design único, tornados, talvez, pensantes perdidos das guelras, da suavidade da pele e do deslizar em ondulares movimentos. É bem possível que essa seja a razão que nos atrai e nos envolve, em horas de música repetitiva, seduzindo-nos a arriscar, avançando na procura do horizonte distante, como se agora fosse possível caminhar sobre as águas, ou não temer afundar-se dentro delas. Amo o mar, como o temo pela perigosa atracção da sua imensa solidão, ele faz-me correr riscos, sempre que alguma coisa me perturba o discernimento, é nele que procuro resposta. É com ele, que me permito meditar, para além das coisas comuns, para encontrar a paz que não sobeja no seio das gentes. Também nele posso extravasar uma, ou outra, pequena loucura restrita ao pensamento.


dc


quinta-feira, 7 de julho de 2022

Outras Guerras

 

Chorei, a guerra chegou à soleira da porta da loja. Nela estava deitado, um negro, um "sem-abrigo" coberto de farrapos e cartão, como um cão de guarda, impedindo o acesso. Funcionava como um “segurança”, um alarme humano. Um ser abandonado por todas as outras guerras, que ninguém chorou. Tiranos o despojaram da vida, com o mesmo abuso com que faziam a guerra, colocavam bombas em casa alheia e aliciavam com falsas promessas. Ali, na soleira da porta, estava a fotografia, de um país colonizado, à espera da libertação. Ali, estava o exemplo, de como a um povo, se lhe tira o orgulho e se reduz a restos. (Moçambique 1973)

dc


quarta-feira, 29 de junho de 2022

Qual a pergunta?

 


Tanto tempo passou desde o último beijo. Na gare, deu-se a partida para o outro lado do rio. Quando, dentro do carro, viu o comboio partir, sentiu os olhos embaciados, um frio no corpo e uma espécie de vazio interior. Aquele beijo, gesto de despedida, deixou na boca, o calor e vontade de querer mais. Do abraço, ficou no corpo a sensação e temor estranho, duma ida sem regresso. O perfume, sobrando na pele, se aliou aos gestos, vindo a fixar-se na memória. Seria a última vez que se veriam. Ainda hoje, estranhamente, não sabe qual deles escreveu as últimas linhas daquele romance. Daí, de vez em quando, fluindo no texto, repete-se no tema, na tentativa vã de que a qualquer momento encontrará a resposta à pergunta que não se quer calar.

 

dc


sexta-feira, 24 de junho de 2022

Meia palavra basta

Somos seres insatisfeitos. Quando atingimos um objectivo, para o qual lutamos tempo infindo, não temos capacidade para o viver, retro alimentar, sustentar, para que não seja descartado à primeira contrariedade. O objecto de desejo, após satisfeito, logo perde importância e partimos para outro, esquecendo que é necessário entender a dialéctica subjacente ao relacionamento humano. Os relacionamentos e as vivências são construidos com altos e baixos, com vitórias e derrotas, com emoções negativas e positivas, e, periodicamente, no surgir de momentos criativos, felizes, bordados de alegria e bem-estar. Necessário é, entender que a vida não é um mar de rosas, antes uma rede de acontecimentos, onde é preciso ter paciência, para enfrentar a queda, força para se reerguer e retomar o caminho, mesmo que os joelhos ainda estejam esmurrados e a escorrer sangue. Não há lugar para a lamecha, ou perda de tempo. É urgente saber coser com sabedoria, os rasgões, alisar o tecido comum que nos une, e vestirmos um novo fato, mais elástico, mais resistente e mais sólido. Para bom entendedor, meia palavra basta.

 

dc


terça-feira, 21 de junho de 2022

Incoerências

Ele cirandava pela rua escura de edifícios em ruínas. O miar do gato ao longe, e o ruído que chegava das casas, eram a sua única companhia. O ambiente era idêntico ao modo como estava vivendo, tudo lhe era pesado, ele, contra o mundo. Pensamento absurdo de quem não encontra solução para os seus próprios problemas e se agarra ao pessimismo. Ultimamente, era comum meter-se em batalhas de opiniões e discussões, onde quase sempre ficava sem norte e acabava por se empertigar, perdendo a razão, diluindo-a nas nuvens negras, que ele próprio gerava. Sabia, ter de procurar, fora dos sítios habituais, as respostas, mas acima de tudo, encontrar dentro de si, as perguntas. A rotina instalada, de esperar que as coisas aconteçam, não abria horizontes. Para se obter resultados, é necessário definir bem o que se procura, onde procurar e o que se deseja encontrar. Ali, ele cirandava, mas também, sentar-se na esplanada olhando as plantas do jardim, ou no areal, observando a ondulação mar, só por si, não resultaria, se efectivamente, não deixasse o espírito libertar-se e ter a coragem de arriscar. Ele queria ser alguém, que não se servisse das palavras de forma inadequada, para enganar as emoções, ou alimentar falsas ilusões, antes usá-las para alimentar sonhos e que o ajudassem a enfrentar a realidade. Este debate, permanente dentro de si, espelhando dúvidas, retirava-lhe o sossego, a incerteza no provir, era uma merda. Sim, sabia o que o comum das pessoas dizem: o importante é viver o presente, blá, blá, blá. Pois, está bem, e como se pára o pensamento, que circula à velocidade suprasónica, nessa busca, duma razão para este seu estado de espírito? A culpa será da economia, da pandemia, do medo viscoso que ainda domina as pessoas, no registo da distância física segura, na máscara que açaima, na surdez às evidências, ou na aceitação, da mentira de vozes variadas de sentido único, em todos os media, em especial os televisivos, que agora nesta guerra dos eslavos, se veio acentuar? É bem possível que seja tudo isso, que nos faz perder o norte, pôr em causa os valores com que fomos educados, de duvidar do que aprendemos, do nosso conhecimento, da nossa capacidade de lutar e amar, de expor das fraquezas humanas. Fraquezas estas, exploradas por técnicos e especialistas vários, no sentido de moldar quem somos, para sermos aquilo, que quem domina a sociedade, quer que sejamos. Será essa, a razão da angústia, da dificuldade de comunicar, de fechar o rosto, ou desabar em palavras incoerentes e perdidas de sentido? Possivelmente, a maioria dos outros, nunca entenderão esta “pescadinha de rabo na boca”, que o trouxe a esta rua escura, afastado do comum dos mortais, a sua maioria catequizados por leis e pressões, daqueles que na sombra exercem o poder.
Naquele, caminhar sem destino horas a fio, sem saber porquê e quando parar, a cada passada, surge uma reflexão, uma emoção, a visualização abstracta, o sonho, o desejo de que tudo mude sem que “perca o fio à meada” da existência. É uma busca incessante de perguntas para a resposta que não tem.

 

 

dc

terça-feira, 14 de junho de 2022

Despedida


Sabes, meu bem, era bom ouvir, chamares-me de amor. Infelizmente, nunca ajustaste a vocalização às frases e emoções certas, acima de tudo, às atitudes. Se assim fosse, talvez acreditasse, que valeria a pena continuar. Não foi o caso, e como também sabes, caminhos paralelos, nem no infinito se encontram. Na caminhada longa, que se me propunha, subjacente à palavra, não poderia perder o meu tempo, nem despender energias, que poderiam ser mais úteis, para a descoberta e concretização do meu objectivo. Encontrar o tal, alguém, que faz bem, o que deve ser feito, e encontrar a alegria e uma parte da felicidade, que a todos, o Universo tem para dar. É bem possível que nunca tenhas reparado, mas eu gosto de estórias de amor, que tenham aquelas declarações, mesmo que piegas, que emocionam e deixam lágrimas nos olhos, que projectam eternidades e heranças positivas. Daí, não nos acomodemos, façamos então o que deve ser feito, deixemos de lado o mapa, que não foi desenhado para a caminhada das nossas vidas. Só assim, outro corpo, outra inteligência, cheiros, saberes, risos e lágrimas, chegarão até nós, semeando existência e humanidade necessárias ao caminho de cada um. Foi bom conhecer-te, foi bom aprender e descobrir nesta nossa experiência, que a amizade existe, mas o amor, que se sonha e quer, é uma outra coisa, que se adentra em nós e nem sempre as palavras explicam.

 

dc

 

terça-feira, 7 de junho de 2022

Mãos e seu fascínio

 


Só ficavam os olhos, cor de céu, encimando o rosto, e um cabelo, agitado, de cor clara. O restante do rosto desaparecia debaixo do azul da máscara. Estávamos os dois num gabinete, iluminado o suficiente, para sugerir um espaço reservado. As perguntas tornaram-se presentes e o diálogo se estabeleceu, de forma higiénica, cumprindo com a minha razão de ali estar. As perguntas surgiam e a minha resposta era prolixa, como se quisesse alongar o tempo para poder observá-la. Estranha a forma como ela continuava escrevendo registando o meu depoimento, de cabeça levantada, os olhos me observando e os dedos se agitando sobre o teclado do computador. De vez em quando, ela questionava de forma simples e levava-me a desenvolver o meu discurso. Eu perdia a atenção para o que dizia, olhando os dedos da mão dela, movendo-se com rapidez, quase aflorando as teclas. Dedos esguios, compridos, aveludados, belamente desenhados, como se os delimitassem uma só linha sinuosa. A certo momento, não resisti, quebrando as regras do protocolo profissional, disse-lhe: as suas mãos são muito bonitas! Naquele momento, eu misturei diferentes sentimentos e interpretações, fiquei de forma insólita abstraído do tempo real.
     “ O espaço se torna vazio, o ruído de fundo esmorece...só mãos, como se estas nascessem com o saber das emoções.”

Poderia ter~lhe dito, o quanto elas eram belas e fascinantes, só o receio, de que a voz traísse o meu empolgamento, me levou a usar o corriqueiro: bonitas mãos!
     “Tantas vezes mãos prelúdio de uma música maior, seguindo a pauta de um amor que se descobre. Tantas vezes mãos sustento de um amor maior, no caminho sereno dos dias...”

 

dc



Texto em itálico do blogue: http://escrifalar.blogspot.com/2017/02/maos-se-tocam.html