sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Ele parecia um ser humano que só confiava nos cachorros.


Já não olha, não quer ver o sal dos olhos, os rostos macilentos, os sorrisos dos outros, o que vestem, como andam. É um indiferenciado no meio de outros.
Os que o observam, divergem na opinião, pela incapacidade de o entenderem, nem saberem das razões da sua postura e aparência. Uns sentirão dor, pensando ter uma cota de responsabilidade, outros desprezo e muitos outros indiferença ao que vêem.
Senta-se na mesa de bancos altos, chinelos em vez de sapatos, por opção diz ele, roupa gasta, barba por fazer, num rosto chupado, com os olhos escavados, e o tal olhar que não olha, está lá, perdido sem luz. Fica com os dedos das mãos cruzados, unhas sujas, de mãos encardidas, possivelmente por não ter abrigo, ou de andar a catar nos caixotes do lixo. Não parece esperar que alguém entre e lhe ofereça um café, ou um pequeno-almoço que lhe mate a fome atrasada que sempre traz consigo. 
Um possível desempregado de longa duração, um sem-abrigo quem sabe? A sua boca tem demasiados silêncios para se abrir. As emoções, os silêncios, o vazio, e, possivelmente as ideias e os pensamentos se perdem, não se conseguindo ligar nem se entender com a envolvência. Sente-se o caos dentro dele, a falta de perspectiva, a capacidade de tomar um caminho, de ter a atitude certa à resposta, se necessária, ou se aquela quer responder. Eu que o observo e sinto que ele sabe, que perturba os outros com a sua presença, mas que lhe é indiferente, ele é uma bofetada social, para a qual não temos resposta, ou não a procuramos. Procurei a sua fala, mas não consegui muito, o seu olhar continuou para além das minhas costas, evidenciando desinteresse ao que eu pudesse dizer para além da sua escuta interior. Ele não era um cachorro abandonado nas ruas a quem tentamos conquistar a sua confiança nos seres humanos. Ele parecia um ser humano que só confiava nos cachorros.

dc



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