“Existe uma voz dentro de ti que te
diz, que se não resistires tudo o que é bonito te será retirado.” Autor desconhecido
Temos de cumprir com essa voz e não
deixarmos que nos tirem tudo o que de bonito e grandioso nos trouxe o 25 de
Abril de 1974. A estória abaixo publicada é uma das muitas, que em diversos
lugares e momentos, aconteceram e que juntas são o registo do percurso, para se
chegar a esse dia da revolução dos cravos.
A MALA DA GEORGETE
O 25 de Abril também
foi isto
Era de tarde, num dia ensolarado de Março
de 1973. Estava moído pelo cansaço e pelo calor, agravados pela caminhada até à
Praça de Touros de Setúbal. Nada conhecia daquele sítio nem daquela terra. Era
o local de encontro com alguém que nunca vira. À hora certa, no local
combinado. Na cabeça, a repetição da mnemónica da senha que validaria o
encontro. Tinha 22 anos, era desertor e estava a entrar na “clandestinidade”.
Poucos momentos depois, vi aproximar-se, lentamente,
uma senhora magra de cabelos brancos. Os braços esticados por vários sacos que
se adivinhavam mais pesados do que pareciam e que lhe queriam sair das mãos.
Aproximou-se e, com um breve sorriso,
recitou a “senha”, para meu espanto. Nunca a imaginaria ser o contacto
esperado, funcionária clandestina do Partido e responsável pala organização de
Setúbal. Só depois do 25 de Abril é que soube que se chamava Georgete Ferreira
e que era do Comité Central.
Rapidamente abandonamos o local e, poucos
dias depois, estava eu a trabalhar com as organizações clandestinas de
juventude do distrito.
Tinha alugado um apartamento na Torre da
Marinha, Seixal com o meu novo nome: Carlos Miguel Soares Lopes. Era num prédio
bem localizado e estabelecemos excelentes relações com o senhorio. Como era
visível a uma distância razoável utilizávamos as persianas como “semáfora” de
segurança para entrar em casa. Um local seguro, portanto.
Um dia, organizei uma reunião de um
organismo no Barreiro em que a Georgete quis participar. A reunião durou mais
tempo do que estava previsto. A noite aproximou-se e trouxe com ela uma
tremenda tempestade. A alimentação eléctrica de grande parte do distrito
colapsou. Ficamos na rua à chuva e às escuras. Georgete decidiu então que seria
melhor pernoitar em minha casa. E lá fizemos o caminho, com vários cortes
intermédios com recurso a diferentes táxis. Chegados ao prédio, e uma vez que
não havia electricidade, a campainha não funcionava. Como o apartamento era no
primeiro andar, umas pedrinhas nas janelas alertaram a Luísa, a responsável da
casa, de que estávamos à porta. E entramos. E a Luísa até tinha feito um bolo
de bolacha que comemos descontraidamente. Pouco tempo depois, estávamos na cama,
posta a tranca na porta, que era um barrote de madeira de razoável dimensão,
que nos permitisse, em caso de assalto da polícia, ter algum tempo para
destruir os papéis mais comprometedores.
Poucos minutos depois ouvem-se pancadas
vigorosas na porta. Sobressalto. Não era nada que se esperasse. A dúvida salta
de imediato: é a polícia, fomos detectados e íamos ser assaltados e presos. Sem
grande tempo para pensar e tentando manter a normalidade, desarmei a tranca da
porta e, do curto diálogo que se seguiu, decidi abrir a porta. Uma luz forte de
lanterna encandeou-me os olhos e a pergunta imediata: esta senhora mora aqui? A
lanterna baixou para a mão do visitante onde estava, encaixado na palma, o
bilhete de identidade da Georgete. Ao olhar para baixo reparei que o homem que
me interrogava estava de chinelos, o que me tranquilizou um pouco “não era de
certeza polícia” pensei. E respondi: sim, é a minha tia que está connosco.
Então, o homem na escada disse ser o nosso vizinho do rés-do-chão e explicou: a
minha filha chegou tarde e na entrada encontrou uma malinha de senhora.
Abrimo-la e pensamos que poderia ser daqui. Quer vir lá abaixo busca-la? E lá
fui sem imaginar o que me esperava. No balcão da cozinha, iluminado com várias
velas, estavam devidamente e organizadamente espalhados jornais Avante,
documentos dactilografados e dinheiro. A foice e o martelo eram omnipresentes.
Quer conferir para ver se está tudo?-perguntou o vizinho. Não, não é
necessário,- respondi enquanto metia tudo na mala - a minha tia e eu
agradecemos-lhe o cuidado.
A Georgete tinha pousado os sacos à porta
quando chegamos a casa e, ao pegar-lhe, deixou abandonada, sem dar conta, a
malinha na entrada.
Chego a casa. A consternação e a
preocupação eram totais. Rapidamente começamos a destruir os documentos mais
sensíveis. A possibilidade haver uma denúncia e de surgir a polícia era enorme.
Era urgente traçar um plano e deu-se início a uma discussão das mais
extraordinárias em que participei. A Georgete dizia que eu e a Luisa tínhamos
que abandonar a casa o mais cedo possível, porque éramos jovens e o futuro da
organização; nós dizíamos que ela era a dirigente responsável e é quem tinha de
abandonar a casa. Nós ficaríamos. Até porque se saíssemos não tínhamos
contactos que nos pudessem ajudar. E foi isso que aconteceu.
Durante a espera, que durou até ao fim da
tarde do dia seguinte, arrumamos a casa para partir. Foram horas preocupadas
pelo que poderia acontecer.
Um camarada “legal” veio recolher-nos e lá
fomos para um refúgio preparado.
Uma das regras da clandestinidade era que
não se podia abandonar casas. Por isso, uma semana depois deste acontecimento,
a Luisa voltou à casa. Primeiro passou pela mercearia onde a interrogaram pela
ausência e nada relataram de qualquer actividade policial. Mais confiante, entrou
e estava tudo como deixamos.
Os meus vizinhos, que nunca conheci,
souberam naquela noite de tempestades exactamente o que nós fazíamos e
calaram-se. E tenho quase a certeza de que foi por solidariedade, pelo menos
gosto de ter essa sensação reconfortante. Porque, na verdade, sem os apoios e protecção
das populações, o trabalho de organização política clandestino em ditadura não
seria possível. O 25 de Abril seria muito mais difícil e provavelmente não
aconteceria como aconteceu.
Relato esta simples história como forma de
homenagem a todos os desconhecidos que contribuíram decisivamente para que a
história se cumprisse.
Porto, 25 de Abril de 2016
Nelson Bertini