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terça-feira, 31 de janeiro de 2012

FOLHA DE UM DIÁRIO

No teu rosto o espanto da minha resposta. Eu disse que sim à tua pergunta. Aceitei ir de comboio levar-te a casa. De todo, esperavas a minha anuência, tinhas feito uma provocação, para acirrar o meu interesse. Foste surpreendida e o meu entusiasmo deixou-te a pensar.

Nós conhecemo-nos nos corredores da faculdade. Era no entanto na cantina onde habitualmente tomavas o teu chá sem açúcar, antes de ires para aula de pintura, que mais convivíamos. Cedo me seduziste com teu semi-sorriso irónico, contrariando o teu olhar curioso e interessado. Quando falávamos, perdia-me olhando a tua boca carnuda que se abria e fechava, para soltar as palavras, nem sequer ouvia, preso pelos trejeitos que tornavam doce o teu rosto, e em mim uma vontade enorme de te tocar as faces.
Comecei a ansiar os dias em que tinhas aulas práticas e sabia que te encontrava. Sabia que podíamos aproveitar o intervalo para conversarmos com um chávena de chá pela frente. Quando assim não acontecia, fazia um intervalo na minha aula e irrompia pela tua de surpresa. O teu riso malandro ficava no ar, enquanto, os pincéis e as mãos se mexiam enchendo a tela. Pousavas o pincel e com as mãos mostravas partes, onde procuravas alterar as cores, a composição e ias “sujando”, nos sítios onde a tinta estava fresca.
Não sei muito bem, quando terá acontecido, a primeira vez, que as tuas mãos expressivas e suaves, começaram a pintar as minhas, pressionando os meus dedos, envolvendo-as com as tuas carícias e o teu calor.
Não sei quando surgiu o primeiro beijo. quando senti o teu hálito suave, os lábios macios como algodão doce, quentes. só me lembro da eternidade que durou e de sentir a boca dorida. No entanto lembro-me bem, daquela vernissage, com trabalhos de colegas nossos. Da qual saímos e fomos até ao Passeio Alegre, na Foz. antes de ires para casa. ali, junto ao rio, ficamos conversando, namorando com as tuas mãos, como sempre, agarrando as minhas em quanto nos beijávamos com intensidade. a hora tardia e as bocas doridas, já quase não se podiam tocar. falavam a necessidade de partires.

Tudo se passou até aquele tal dia, em que viajamos para tua casa. Vivias a alguns quilómetros do Porto. Ambos, nervosos e excitados. Fomos falando e inventando, sobre o que seria o nosso almoço, como se fosse, naquele momento, a nossa preocupação maior. de verdade, eu não conseguia deixar de olhar para teu cabelo dourado e encaracolado, caindo sobre os ombros. para os teus olhos amendoados. para tua boca de lábios cheios, que dançavam a cada palavra e perdia-me.
O almoço à base de salada, foi prático, quase silencioso, as expressões de cada um falavam mais. Rápido voltamos à sala comum enorme, e recolhemo-nos no sofá, dando asas aos nossos desejos. carícias. beijos prolongados, de gozo. mãos que se tocam, corpos que despem e cheiros que se sentem. entrelaçamo-nos como se um só corpo existisse. depois a calma. Um tempo depois. eterno. deitados no chão alcatifado, olhando o tecto fomos conversando. as mãos, sempre as mãos, se misturavam umas nas outras, como com medo de se ganharem distância. foi o prelúdio doce de um recomeço, como se após o reconhecimento, se reatasse o caminho. agora com mais segurança explorando cada poro, cada beijo, cada toque, como únicos de sensibilidade e prazer. eu sempre focado nos teus olhos, que me envolviam. enquanto os corpos se buscavam. tudo fazendo para que se prolongasse o momento.
O final da tarde chegou, e assim a hora de eu partir. Alguém ia chegar e eu tinha de partir. Já no comboio, sentado de costas para o destino, deixava que me afastassem daquele lugar e com ele parte de mim. as memórias ainda recentes desfilaram na minha mente, como um filme, em três dimensões. calor, cheiros e sensações dispares acompanhavam as imagens. uma calma estranha se apoderara de mim.

Do mesmo modo, sem saber como tudo isto começou e aconteceu, nunca soube porque terminou. Talvez o fim das aulas, e com ele o final do curso, tenha sido a razão. Mais tarde, embora nos víssemos de quando em vez, de passagem, e somente o suficiente, mantínhamos os mesmos olhares. Em mim, a mesma sensação de perda.
A sensação de perda durou tempo. Anos depois, ao visitar uma das suas exposições, acompanhado com uma amiga. senti-me traindo. saí fugindo do seu sorriso, dos teus olhos cada vez mais misteriosos, que me tinham sugado um pouco da existência. Os anos passaram. Um dia voltei à sua cidade, telefonei-lhe dizendo, estou aqui! As mãos já não se encontraram, falamos dos filhos, da nossa distância, dos sucessos e insucessos, mas no final, quando nos separamos para os nossos destinos a sensação de perda ficou novamente viva.

Corremos o tempo sempre procurando oportunidades para nos realizarmos emocionalmente, e elas fogem-nos entre os dedos.