segunda-feira, 22 de agosto de 2011

História de um quadro II


Nunca fui de pintar todos os dias com horário estabelecido, como se a criatividade e inspiração fosse um acto permanente. Pinto quando me apetece, se for todos os dias óptimo, se não for óptimo também. Tem de apetecer, sentir o bichinho mexer por dentro. Por isso queria contar esta estória do quadro verde.
Verde não era cor que se visse, o meu sectarismo tonal estava a matar-me, mas na verdade a ideia inicial estava na janela e na luz através dela, com aquela cortina semi-transparente, ah sim e também no candeeiro com a luz acesa em pleno dia. O fascínio da luz do candeeiro tinha que ver com algo de silêncio, isolamento espaço introvertido de leitura de fim de tarde. La Casa se queda sola
Tudo fervilhava no princípio. Como fazer, e o quê, com aqueles elementos. Eu imaginara aquele verde saído de algum sítio da memória, mas não ligava com nada.
A composição estava fraca, havia ainda um espaço enorme entre a mesa do candeeiro, quase sem perspectiva e o espaço limpo todo verde debaixo da janela. Guardei o quadro e deixei a marinar vários meses.
Naquele dia acordei cedo. Na véspera, tinha estado a trabalhar num quadro que tinha começado há alguns dias e deixara-o parado. Como sempre, a porta do atelier ficou aberta. É meu hábito ao sair do quarto, olhar para ver o que está no cavalete, de modo que sem juízos pré-concebidos, analise e comece logo a fazer algo. Nesse dia assim aconteceu. Ainda seminu, entrei e comecei a pintar até acabar o quadro do cavalete. Ao arruma-lo, olhei para aquele outro, todo “verde”, ali encostado e pensei para comigo que tinha de o acabar, ou destruir construindo algo por cima.
Peguei nele coloquei-o em cima da mesa ao lado do cavalete e lentamente comecei a trabalhar pequenos pormenores, tentando deixar-me seduzir por ele. Caminhando, pé ante pé, ou melhor, pincelada atrás de pincelada, fui fazendo umas colagens para dinamizar o espaço debaixo da janela, e aos poucos fui-lhe dando uns toques, perdendo o medo e avançando. Quando parei ao fim de um par de horas, ainda sentia que estava longe de estar completo, mas estava mais animado, o verde incomodava-me menos, a janela e o candeeiro estavam menos perdidos. Mais uma vez deixei-o a marinar, julgando que tão cedo não lhe ia pegar. Erro. No dia seguinte como sempre cumprindo a rotina, ao sair do quarto, olho e vejo umas sombras do cortinado da janela, sobre o quadro. A solução surgira, comecei logo pintando dando sequência ao que vira, até finalizar. Tão entusiasmado fiquei, que outro quadro à vários meses esperando melhores dias, levou o remate final.
Quando lavava os pincéis, pensava no que se tinha passado. Naqueles dias eu não tinha ficado dividido entre leituras e tarefas, o tempo correra num ápice e o prazer tinha sido enorme quando por fim dera por concluídos aqueles quadros. Mais uma vez conclui, lembrando-me um pouco do modo como Polock pintava. Por mais que o resultado final seja o nosso objectivo, o acto de fazer, trabalhando as tintas e o espaço possuem um gozo inexplicável.
“Para que haja arte, para que haja alguma acção e contemplação estéticas, torna-se indispensável uma condição fisiológica prévia: a embriaguez. A embriaguez tem de intensificar primeiro a excitabilidade da máquina inteira: antes disto não acontece arte alguma.”
Friedrich Nietzsche, in "Crepúsculo dos Ídolos"

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