sábado, 13 de agosto de 2011

Realidade no seu reflexo

Foto: Diamantino Carvalho
A dor o massacrara toda a noite, ele tinha de observar o que se passava no interior. Seriam os dentes, aftas, ou algo que lhe causava a dor lancinante que o atormentava?
Ao abrir a boca assustou-se estarrecido com o que via. A boca estava cheio de palavras, de frases completas, de letras soltas, em diferentes tipos de letras e cores várias desde o vermelho carregado, ao lilás mortal, passando pelo azul. o amarelo e o verde, tudo emaranhado. Tudo o que ficara por dizer durante anos, estava ali, forçando a saída, magoando-o. As palavras de raiva, as palavras da razão, as palavras insensíveis, as frases hipócritas e muitas, mesmo muitas de amor, de ternura, de paixão num novelo no fundo como se quisessem sufocá-lo.
Lembrou-se da frase publicitária “o algodão não engana”. E fechou a boca, a doença era terminal, nada havia a fazer devido ao estado avançado a que chegara.
Olhou e voltou olhar, não acreditava no que via. A doença espalhara-se. Rugas vincando-lhe o rosto, sobrancelhas carregadas, boca cerrada e os olhos como se fossem lagos, de um vale perdido no meio das montanhas. Ele olhava e via tudo, como se pela primeira vez, estivesse observando o atlas do mundo, onde cada linha, ou cor indicava os segredos da terra.
Quem era aquele desconhecido à sua frente, há quanto tempo estavam tão próximos, sem se conhecerem, sem aperceberem?
Por quê só agora, aquele outro, lhe explicava todos os silêncios, todos os dias de angústia, todas as lutas que travara?
Tinha-lhe sido feito um diário da vida, que até hoje ele se tinha recusado a consultar.

A dor surgida, por razão que desconhecia, tinha-o levado a observar-se ao espelho e perceber o quanto a realidade estava no seu reflexo. "O reflexo não engana"

1 comentário:

  1. Mas e se percebermos que o reflexo é um recorte, parte de um todo que se sujeita à face do espelho, sujeito ele também aos espaços que se encontram fora do campo, imagem virtual, semelhança, mas não real? Então o relfexo é mentira verossímel, eco daquele que se olha.
    (ps: o texto é maravilhoso)

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