terça-feira, 15 de novembro de 2011

HOJE QUERO SORRIR

Olhou atentamente no espelho. Esfregou com a sua mão direita a face e fixou os olhos do outro lado da realidade. Avaliou cada uma das rugas que tinham surgido nos últimos tempos. Verificou o que o seu olhar estava triste e as sobrancelhas cerradas. De repente olhou com mais atenção e descobriu por baixo do lábio inferior dois ligeiros relevos, algo como uns abcessos, mesmo por baixo de cada um dos cantos da boca. Assustou-se. Afinal que raio era aquilo que lhe surgia também agora? Lembrou-se logo das bochechas do Presidente Soares, com a idade parecem dois alforges pendurados de cada lado da cara. Tornou a olhar a remirar, tentando descobrir se eram os reflexos do espelho, ou se efectivamente aqueles relevos estavam lá, algo se alterou na sua fisionomia. Não adiantou. Tudo dava a crer que aquelas horríveis saliências vieram para ficar. Mas para ficar por quê e qual a razão. Intuiu desde logo, algo dera origem a tal acontecimento.

Após análise atenta, começou a adiantar serviço, fazendo ginástica como dizem os especialistas. Encheu as bochechas, chupou as bochechas, fez caretas, mexeu o maxilar para a direita e esquerda, contraiu e descontraiu os lábios, enfim procurou activar todos os músculos da face, ao mesmo tempo que os miolos funcionavam a grande velocidade procurando encontrar resposta para o facto.

Começou aí a batalha. Era necessário encontrar a raiz do problema antes que a coisa piorasse. Reflectiu largo tempo. O que poderá ter originado tal?
Lentamente fez o balanço. Falar, agora, era coisa pouca, por vezes passava um dia em que não trocava uma dúzia de palavras...não raras vezes, se comovia com as coisas mais comuns que se lhe deparavam, ficando espantado com isso mesmo... lia, não tanto, como era seu costume, portanto não seria por aí....pintar ou desenhar, assustava-o, e fugia do sítio onde se dedicava a tal prática, porque ficava indeciso sem saber o que fazer, o espaço branco fazia-lhe lembrar neve, arrefecia-o, mas quando conseguia o semblante mudava. Gostava muito da sua casa, no entanto não aguentava muito tempo sentado, a não ser para ver televisão, caso contrário.. lá fugia ele para qualquer lado sem destino. Afinal onde estaria a razão do que se estava a passar?
O dentista tinha-lhe dito, que ele se calhar dormia de boca cerrada e isso não era bom para a saúde dos seus dentes e estrutura do maxilar. Teria sido isso que provocaria tal coisa?. De facto ele acordava com aquela cara fechada, de lábios apertados fazendo uma linha fina, com aquele ar de quem comeu e não gostou. Oh raio seria isso?
Foi de novo para a frente do espelho e esboçou então um sorriso, tentando quase a gargalhada, tipo palhaço, com as comissuras bem levantadas, erguendo as bochechas, e quase fechando os olhos. Reparou então que os tais relevos ficavam mais suaves e quase desapareciam. Dava-lhe um ar meio amalucado, mas na verdade disfarçava. E então voltou a insistir, acompanhando esses esgares gargalhentos, com o inchar e desinchar das bochechas como se de um saxofonista se tratasse. Afinal parecia ter descoberto o que se passava com ele, e as suas rugas especiais, ou melhor dizendo com os seus “papos” surgidos debaixo das comissuras dos lábios: A politica e os políticos que geriam o país, a crise e as consequências que trouxeram para a sua vida, tinham-lhe tirado a vontade de ver noticiários e de confiar no futuro. Os amores imperfeitos tinham-lhe deixado, feridas, insanáveis. Os amigos ganharam distância construindo vidas próprias, com tudo isso, tinham-lhe tirado algo que ele tanto prezava a alegria de viver. Tinham-lhe “matado” o sorriso, tinham-lhe tirado a gargalhada aberta e franca, tinham-lhe tirado a vida.

Não se assustou, ainda havia gente boa no mundo, para ajudar e confiar. Ainda havia a esperança de que um dia o mundo fosse diferente. A maldade é como a mentira, tem perna curta e não dura sempre. As crianças que não se preocupam com as canseiras e chatices do mundo real e social, soltam a gargalhada fácil e os gritos de alegria. Ele teria de voltar a esse mundo, tinha de soltar a gargalhada, desprezar os bens materiais que o manietavam e as regras certinhas de uma sociedade pervertida nos seus valores.

A partir de hoje ele seria outro. Perante o desprezo sorriria em desaforo, perante as preocupações soltaria um grito, perante as lamechas bolorentas, ligaria o aspirador para as recolher com rapidez, ficando fechadas no saco dos perdidos.

Levantar-se-ia, pensando um pouco mais em si, porque se satisfeito, melhor seria a a gargalhada com que contaminaria os outros.

As lágrimas soltaram-se dos olhos como se de uma mar se tratasse. Aquele amor que ele vira expresso, deixara-o desfeito. Caminhara anos a fio derretendo-se na vida, na esperança desse amor que tanto sonhara, e ele estava ali em representação, mas cada vez mais longe da sua realidade.

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