terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

DIVAGAÇÕES


Poderia pensar que ele se tinha esquecido de lhe escrever, não era verdade, todos os dias lhe escrevia, só que não publicava, ficava tudo guardado nos recônditos da memória. Convencera-se que ela não entenderia se ele publicasse, isto é, se ela se desse ao trabalho de ler. Ela não gostava de fazer ou falar de projectos, para ele, na maioria dos casos, eram o tema dos seus rascunhos, alguns dos quais não foram sequer equacionados entre si. Ele não queria vazios, esquemas furados, pretendia algo mais de que uma entrega de encomenda com hora marcada. Amor tem projectos declarados.

A Casa do Lago ainda não tinha posto de lado, nem a viagem às ilhas, nem muitas outros sonhos e vontades, que por vezes conversavam. Continuava empenhado em ler e aprender, mesmo que o tempo fosse cada vez mais curto, usava isso como meio de se ausentar do “nós”. É mais fácil viver a vida dos outros nas estórias que os escritores inventam, afagando os nossos espíritos com mais ideias, vontade de sonhar, e com a vantagem de apurar raciocínios; de algum modo aprendendo efectivamente a ler e a escrever.
Há muita gente que pensa saber escrever, ler e interpretar textos, ele não pensava assim; quanto mais lesse mais aprenderia. Tinha a consciência, de que há uns predestinados que nada precisam para o fazer, e uns outros, como ele, que precisam de muita leitura e muito trabalho para conseguirem transportar para a folha os seus pensamentos.

Ela não sabia, mas ele continuava a passear diariamente, mas só esporadicamente o fazia junto ao mar. No entanto embora ela já não o acompanhasse, ele vivia tudo como se ela estivesse ali ao seu lado, fazendo-lhe companhia. Numa das últimas vezes em que foi para a marginal, junto ao rio, começou a falar sem reparar que ela já não estava ali; ficara com a sensação de que a vira baixar-se para fotografar as gaivotas e de repente desaparecera. Seria mais uma imagem fantasma criada pelo pensamento.

Não podia passar uma esponja sobre que fora dito, sempre pensara o amor como prioritário. Conservava ainda alguns elementos de referência que marcaram a distância e a partida, não de forma obcecada, mas fazia-o simplesmente para se lembrar que há marcas que não saem com uma simples lavagem da pele.

Ele sabia, que havia quem ajuizasse, como ela, pensando que distribuía o seu amor por becos e ruelas, mas na realidade, somente procurava juntar os diversos cacos de muitas estórias de sonhos perdidos e tempos roubados, fazia-o escrevendo, ou mantendo os rascunhos na memória, como uma espécie de catarse para encontrar outro rumo, e quem sabe, vir a concluir o puzzle duma de uma estória verdadeira.

DC



1 comentário:

  1. "Há muita gente que pensa saber escrever, ler e interpretar textos"

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