quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Um Natal Sem abrigo


Com a tigela da sopa na mão sentado na beira do sofá mastiga o seu silêncio, olhando indiferente a televisão e seus conteúdos. Nada motiva o seu interesse, será sempre a repetição das notícias e programas que mofam nas consciências. Por isso se concentra na sopa que come, no seu paladar e na justeza dos seus condimentos, para enriquecimento do seu sabor. Conta o número de colheradas que mete na boca, e mentalmente vai enumerando: batata, salpicão, cebola, grão, e agrião. “Esta sopa de agrião está boa!” e saboreia. Adora comer sopa e esta é suave e ao mesmo tempo marcante pelo seu gosto requintado, além de que se confirma, ao mastigar, que os diversos componentes mantém uma boa ligação uns com os outros. Perdeu-se, que estava ele a pensar, de que silêncio, de que vazio, que importava a sopa, que sempre comia sozinho como as muitas outras refeições? Na maioria dos casos cozinhava já sem prazer e comia na mesa da cozinha, olhando o açafate onde a fruta repousava, que por hábito comia antes das refeições. Nem sempre o silêncio era idêntico muitas vezes dentro da sua cabeça os pensamentos e as emoções se cruzavam com as lembranças e a refeição ficava pesada. Tantas vezes se repetiu o fado, que um dia ficou olhando os tachos os pratos, os condimentos, deu um passeio pela casa, como estivesse matando saudades, foi ao armário da roupa escolheu roupas simples fez um embrulho e colocou num saco de plástico preto. A sentou-se e durante uma hora escreveu cartas para as pessoas que entendeu mereciam saber. Pegou no bilhete de identidade meteu-o no bolso, fechou a porta e de seguida foi aos correios enviar as cartas.
 
Dormir nas ruas, comer o pão que o diabo amassou(?), na realidade assim assumiu a verdadeira liberdade, que durante anos não teve. Se em casa possuía bens materiais, também continha o vazio. Para quê preservar o que já não tinha sentido? Quem estabelecia o que era certo ou errado, que sociedade esta que se dizia evoluída, em que os valores se vão pervertendo, que poderes fornecemos nós a quem nos dirige? 
Na rua, como ele durante anos, muitos eram os iguais que partilhavam pedaços de estória e de vida. Lentamente se foi distanciando dos valores “sociais” de convivência, a cultura passou a ser a linguagem dos outros iguais e a comida obtida através dum esmolar constante, ou nos contentores do lixo. Os farrapos que vestia, só para o proteger do ambiente, eram-lhe dados, ou encontrava-os, por vezes, dobrados, juntos dos contentores do lixo, pouco lhe importava o que vestia, eram adereços de um teatro maior de qual fugira. Cada dia que passava mais se distanciava do que já fora um dia, esse tempo  de obediência às regras opressivas de uma sociedade que não o respeitava, o desamor que sempre sentira, já não fazia mossa, tudo se relativizava. 
Hoje, deitado na soleira da porta de uma loja, encolhido enrolado sobre si próprio, como estivesse convulsões, envolvido na própria dor, toda a indiferença emanava de si. A roupa andrajosa colada ao corpo, um saco negro dos que se usam para o lixo, uma lata vazia e uns cartões, restos de embalagens, faziam-lhe companhia. O que era hoje, saía-lhe na respiração dos olhos, alguém que desistira à muito de fazer parte desta sociedade. Toda a liberdade tem um preço este era o seu.
dc





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