segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Beijo de Carnaval



Caminhava em passo estugado, como de costume, fazendo disso o meu exercício matinal. Sentia no rosto o frio das pingas escassas de chuva “molha tolos” e o vento, que trazia com alguma força, tirando-me da modorra e sono que ainda habitava em mim. As ruas estavam silenciosas, de onde em onde passava um carro e muito poucos se encontravam estacionados. Sugeria uma espécie de abandono das gentes, talvez expectável tendo em conta que era um dos três dias de Carnaval, como tal seria normal que os farristas e as famílias aproveitassem, a tolerância de ponto, para se deixarem dormir um pouco mais, gozando o calor da casa. Os pensamentos, em tal cenário, divagavam para outras zonas menos citadinas e tempos mais distantes, que mais se acentuavam com o cheiro a madeira queimada que por certo alimentaria os recuperadores e lareiras. Se não fossem os pormenores citadinos, como aquele correr de vivendas, os edifícios de apartamentos, as bocas de incêndio, o alcatrão, quase parecia caminhar por uma aldeia dos meus ancestrais.
Nesse caminhar e divagar fui fazendo o meu exercício, quando de repente, ao chegar ao fim de uma das ruas, trazido pelo vento chega-me um perfume intenso misturado com o cheiro mundano, noctívago, e no dobrar da esquina deparo-me com uma figura feminina voluptuosa, suportada num corpo escultural, que se adivinha através da lingerie que o desenhava, debaixo de uma espécie de tule preto que a cobre desde os ombros até pouco abaixo dos joelhos, secundado por umas aberturas laterais que deixam apreciar uma pele branca marmórea, O rosto de cor pálida, belo, tem as sobrancelhas e as pestanas pintadas de negro, as pálpebras de um tom de azul acinzentado, e as olheiras acentuadas, sugerindo cansaço, realçavam o brilho dos olhos, Lábios marcados, por um batom cor rubi, meio esborratados, especulando beijos, O retrato que agora faço do momento, foi desenhado no meu cérebro como se fosse um laser rápido, que em segundos me marcou. O espanto e a surpresa, daquela figura perante os meus olhos, provocou-me um ligeiro tropeço, que a sua mão delicada impediu que tomasse proporções mais graves, agarrando o meu braço e colocando-me em milésimos de segundos a meia dúzia de centímetros de si, Inebriou-me com o seu perfume e sorriso divertido, enquanto os seus olhos perscrutavam-me. Ainda mal refeito, sinto a sua boca quente sobre a minha sorvendo-me os lábios, sentindo a sua língua  insinuando-se na minha, e o seu corpo se insinuando no meu, Meio atordoado, pela surpresa do que ocorria, ouço o barulho de portas se abrindo, dum carro negro que parecia surgido do nada. Caímos no banco de trás em inexplicável samba de corpos que se libertam do supérfluo e se encaixam, ambos perdidos na bruma do prazer que os tomava, nem o meu corpo suado parecia incomodá-la, antes pelo contrário, A sua boca é um vulcão, percorre-me e assenhora-se de mim, sinto os seus beijos e os dentes ligeiramente afilados na pele, entro num labirinto de emoções e perco a noção do tempo, como se asas me tomassem o corpo levando-me para as nuvens, numa espécie de loucura que se apoderou dos meus sentidos...ouvia a sua voz quente se distanciando num discurso que não percebia. Algum tempo depois, recuperando a razão, vou-me assenhorando do lugar e de mim. Ela tinha desaparecido, somente um pequeno lenço preto repousava no estofo do carro, com uma ligeira mancha vermelha, a luz do dia que chegava do exterior incomodava-me os olhos, Fechei um pouco mais a porta enquanto me recompunha e olhei o rosto pelo retrovisor do carro e fiquei horrorizado com o que via. Os meus olhos se perdiam numas olheiras profundas, escuras, num rosto descolorido, dois pontos pequenos, escuros marcavam o pescoço, e os lábios como um desenho escuro desenhando a boca...ainda não refeito do que sentia e via, ouço a sua voz quente, como surgida de nenhures, em que se adivinhava um sorriso, que dizia pausadamente: ”caminhante o caminho faz-se caminhando...é Carnaval não leves a mal...ah ah ah” 
dc



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