quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

O TEXTO QUE NÃO ESCREVI


Hoje bem cedo, quando me preparava para iniciar a minha caminhada rotineira, tocou o telefone, como era muito cedo assustei-me, pensei o pior. Quando olho no visor, e vi o seu nome ainda fiquei mais preocupado. Atendi, e a noticia deixou-me um pouco em estado de choque, afinal a montanha não pariu um rato, mas um autêntico dinossauro, não havia nada a temer e recebia uma das mais belas notícias de toda a minha vida. Minha irmã tinha concluído a licenciatura!
Escusado será dizer que hoje caminhei de sorriso de orelha a orelha, sempre a pensar como encontrar as palavras adequadas, para no meu blog, dizer tudo o que havia para dizer, sobre toda a sua aventura. Não me saía da ideia o chavão “ querer é poder” e a canção Exílo, cantada por Adriano Correia de Oliveira e que tantas vezes ouvíramos:
 
     Venho dizer-vos que não tenho medo
     A verdade é mais forte que as algemas.
     Venho dizer-vos que não há degredo
     Quando se traz a alma cheia de poemas.

Aqui substituia inconscientemente a “verdade”, por “vontade”. De facto, só uma vontade indómita de levar a bom porto o seu objectivo, é que a fez superar todas as difculdades, profissionais, familiares, e emocionais, que ao longo do curso lhe foram surgindo.
O texto ficou por fazer, escondido dentro de mim, há espera de coragem. Quando hoje, pela tarde, abro o Facebook e leio o texto do meu sobrinho Miguel, pensei para comigo, nada podia ser dito tão bem, ainda bem que não me atrevi.
Por isso, hoje no meu blog, o texto que eu não escrevi tem um significado superlativo. O orgulho pelo feito conseguido pela minha irmã Branca e pelo belo texto escrito por um sobrinho, que a honra, e ele próprio orgulho de todos nós.

dc


BRANCA, A MINHA TIA BRANCA
O dia amanheceu assim, com lágrimas. Explico: esta senhora é minha tia. Chama-se Branca Carvalho, tem 63 anos, e acaba de se licenciar na Escola Superior de Educação de Viana do Castelo.
Quando estava quase a fazer 20 anos, entrou para a clandestinidade para lutar por um País novo. Na manhã de um domingo de Maio de 1973, atravessou de barco as águas onde rio e o mar se abraçam até à margem da Afurada, deixando para trás família, emprego e identidade. Passou a chamar-se Mariana, nome de código. E só apareceu em casa a 29 de Abril de 1974, quando a liberdade já não voltaria atrás. Quando chegou, havia flores novas na velha casa do Vale Formoso. E cheirava a bolinhos de bacalhau, quentinhos, acabados de fritar.
Hoje dirige um ATL em Viana do Castelo, o Descansa a Sacola, que é um modelo de ensino e onde não faltam poemas pelas portas e paredes. E onde parte da minha família ainda luta, até ao último cêntimo, até ao último verso, para que as crianças possam sonhar e viver num amanhã mais decente.
Devo-lhe uma pequenina parte do País que hoje temos. Aquele que não está falho de memória e sabe que as lutas só terminam quando sabemos que o nosso semelhante adormece com a mesma dignidade com que desperta. Por isso, pelo País que ela sonhou (e, em parte, ainda somos), a minha tia escolheu sempre os outros. Quanto ao “eu”, logo se via...
Devo-lhe, e a todos os meus tios, a melhor infância e adolescência que se pode ter, onde nunca faltaram os pedaços de sonho que devem comandar a vida. Houve festas, abraços e afetos a rodos. Livros, filmes, canções e momentos vividos estrada fora, vida dentro, costurados como devem ser sempre os laços e as memórias: eternos.
Nesta família, já passámos por muito, já passámos por tudo.
Caímos, mas levantamo-nos. Ela mais vezes. Nunca baixou os braços.
Para ela, uma dificuldade nunca é uma dificuldade. É apenas um caminho mais apertado, mais demorado, para que as mãos possam, de novo, tocar o céu. Ou tentar, pelo menos. Sou suspeito, mas acreditem: a vida dela é um exemplo de sacrifício e abnegação, onde nunca faltaram os sorrisos sempre prontos para os dias mais aziagos.
Hoje pela manhã, quando as lágrimas me escorreram de felicidade, lembrei-me de tudo isto. E de como a vida pode ser, afinal, justa e devolver-nos sonhos, novinhos em folha, se soubermos que os apeadeiros e as curvas apertadas fazem parte do percurso. Para isso, precisamos, por vezes, de alguém que nos inspire. No meu caso, chama-se Branca. Branca Carvalho. A «Mariana» que, no País sombrio de 1973, já lutava sem a certeza de dias claros, sem saber quando a liberdade viria. Ou se viria. Mas nunca desistiu.

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