Calmamente, vestiu-se e saiu para colocar o lixo no contentor. Cumpriu as regras. Levava um pequeno frasco com gel de álcool, e "dodots" no bolso, para o que fosse necessário. Manteve a distância entre os poucos que se cruzavam consigo, não contactou nem foi contactado, passou entre os raios de sol, gozando as sombras. Como sempre trazia consigo uma capa com um bloco de notas e um livro, o de hoje, Se Esta Rua Falasse. Não parou no contentor mais do que o suficiente, fez-se distraído de si próprio e continuou, durante cem metros, na circunvalação, depois virou para a rua, que sabia deserta, quando a escola está fechada. Se aquela rua falasse, lembraria quanta vez por ali passou, procurando fugir da agitação dos dias e encontrar um pequeno espaço, onde a ambiguidade entre a cidade e o campo existia. Ele precisava de encontrar-se, abraçar a natureza com os olhos e os seus cheiros e não se perder, no medo, ou no pânico, de todos os dias, sugerido em imagens e textos nos média. Precisava do ruído silencioso da natureza. A dado momento, encontrou um muro de pedra, baixo o suficiente para se sentar à sombra de uma árvore e poder ler o seu livro. Tinha de parar um pouco os ruídos das mortes, da pandemia, do que fazem as elites financeiras, as vozes dos governos e acima de tudo mitigar, para si, a dor daqueles, que diariamente, de forma dura procuram cumprir solidariamente e tomar decisões para que todos outros fossem sobrevivendo.
Abriu o livro e lentamente enquanto dava um último olhar no ambiente que o rodeava. Entrou finalmente na leitura do livro. O romance não era de todo alegre, falava de amor, mas também de racismo e da injustiça social a que a sua negritude os condenava. Ele, preso por um crime que não cometera, ela, grávida, ambos esperando, ele a libertação, ela que a criança nascesse. A sua estória dava alento para acreditar que o amar se sobrepunha a todas as outras coisas. De vez em quando, levantava os olhos para uma pausa, olhava em volta, e recriava-se com o ruído do riacho, dos pássaros e da brisa que corria. Enquanto isso o tempo correu.
Furei a quarentena, pensou, mas não coloquei ninguém em perigo. Só tinha acontecido, porque na sua mente se confundiam inverno e primavera, a esperança se resumia ao findar dos dias deste seu entardecer da vida e perante este presente sobreviver à maldade de alguns homens, que destroem o nosso mundinho, plantando um vírus mortal.
A atitude assumida não foi a mais correcta, mas entre isso e o risco de ficar louco, ao fim destes dias todos, fechado em casa, arriscou. Agora com as pilhas carregadas, é como se tivesse tomado a primeira parte de uma vacina e pronto para nova etapa de sacrifício.
dc
Boa escrita, sempre. Beijinho
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