quinta-feira, 7 de junho de 2012

"AGARRADO"



Fiquei-me só pela sombra. Deixei-a flutuar, não quis saber dos seus vapores. Rejeitei ser iludido por um bem estar temporário. Embora o fascínio da sua cor e o cheiro que pairava no ar me fizesse secar a garganta, e a língua se enrolar inquieta, não me deixei iludir e mantive-me distante. O suor corria-me pelas costas abaixo, tal o esforço despendido para continuar longe da tentação.

A experiência do passado recente continuava viva em mim, quando o vi morrer deitado no leito agarrado ao vício. Tudo lhe servira nos últimos dias para apagar aquele desejo insano que o seu corpo solicitava a cada segundo. Nem o cheiro perfumado do after shave ou da lavanda barata o tinham impedido de emborcar todo o conteúdo.

As dores abdominais possuíam-no, a cor terrosa da sua face evidenciava a sua destruição física. O seu cérebro já não comandava e o fim estava a vista.

Ele morreu, deixou-me mais só, com o mesmo sangue viciado no corpo e com a mesma brutalidade com que marcara toda a minha vida. No silêncio da sua morte, trespassado pelo sorriso de alegria duma criança, que vira seu avô morrer, assustei-me, quebrando o cordão umbilical. Foi uma luz acesa no seio da floresta.

Acordei na realidade, teria de evitar repetir a história. Todos estes anos estive “agarrado” e fiz mal a todos os que me rodeavam. Primeiro perdi o emprego, depois perdi, os amigos e agora na iminência de perder as pessoas que mais amava. Não ouvia os filhos e castigava-os na dureza, e punha-os na frente da brutalidade infligida sobre a sua mãe. Correiadas, bofetadas, e tudo o mais que na hora surgisse, seguido de sexo bruto, violento. Violentava-me e era violento, agindo sem nexo.

Naquele mesmo dia todas as sombras deixaram de existir. Apaguei a luz do infortúnio que durante anos me dominara, sentindo o seu gorgolejar na pia da banca e o ruído do vidro estilhaçando, como se fosse uma nova música de sucesso.

Agora teria de manter a coragem e suportar a decisão. Suaria quantas camisolas fossem necessárias e vomitaria das entranhas todo aquele sabor etilizado no correr dos anos, feito sangue.


Havia uma nova esperança, a revolução chegara vestida de cravos vermelhos e apontava para uma outra sociedade com outros valores e apontava caminhos para renascermos. Já não seria um espelho social.


Assim fora escrito há trinta e muitos anos, hoje sinto-me novamente no limite e com medo de que tudo regresse. Estão-me a abafar os dias tirando-me as saídas. Desempregado, com contas para pagar, filhos estudando, e um sistema político asfixiante, que me vai roubando todos os valores materiais e morais que me restam. Se isto não muda...


Sem comentários:

Enviar um comentário