quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Através das cortinas





Sentada, na sala despida, olha o mar sem fim através da janela. Escolheu o lugar, a casa e aquele mar para seu recato. Saiu do mundo em que nascera e habitara com outros, para viver o seu mundo. Escolheu fugir do frio que tinha, da cidade onde vivera, dos amigos. Nada a prendia, nem aos lugares, nem às pessoas, era andarilho em viagem à procura do seu estar. Estava ali porque sim, na sua solidão, no seu silêncio, no seu gritar. Ria desbragadamente, dançava com qualquer ruído parecido com música, e coloria seu vestir com o florido encanto dos hippies. Trabalhar era para viver, não viver para trabalhar, no quê e no por quê, nem se prendia a pensar.
Como tudo na vida, mesmo que se não queira, as memórias existem e de vez em quando surgem, cada vez mais perdidas da referência, como se fossem estórias contadas de livro. Já não sabe, se sempre foi assim que viveu, ou se agora procura descobrir no só que agora vive, no seu silêncio, aquilo que aconteceu. Começou a reparar cada vez mais naquilo que a rodeia, o olhar tornou-se mais agudo, o pensamento mais célere, sente e vê antes de que os outros se apercebam o que acontece. Aquilo que escolheu como paz de espírito traz-lhe mais “eus” para a sua vida, enchendo-a, talvez de mais, do que não queria.
Sabe uma coisa, quando se come vezes sem conta, uma comida que se gosta, sem que se acrescente variantes, seja no acompanhamento, seja no lugar onde se come, seja com quem se come, acabará por enfastiar. “Somos seres sociais”, pensava ela, nada é para sempre, se fosse não havia razões para que a palavra felicidade existisse. Por isso, ou vive e abdica de algo partilhando e vivendo os altos e baixos, seja do sol, ou intempérie da vivência dos dias, ou morre lentamente, absorvida pelo tédio, nesse só que escolheu e agora já não lhe dá respostas.
Não sendo solução, talvez um animal de estimação aconteça, para preencher o espaço em buraco de ausências. Será que o bichano lhe coçará as costas, lhe dará o caminhar abraçada no areal, o beijo de mel, responderá ao que interroga, chamará o cento e doze? ...


dc





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