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sábado, 26 de maio de 2018

Somente o silêncio da última partida




Os minutos corriam lentamente no relógio electrónico da estação. Quando se espera, o tempo parece eternizar-se, os minutos parecem horas. Tinha sido avisado da tua hora de chegada. Temias que, por qualquer razão, fosse impedido de te ir buscar. A cidade não te era de todo estranha, mas tinham passado muitos anos desde que saíras para viver no sul. Nunca falhei. Ia mais cedo por prevenção contra o inesperado. No entanto, em algumas das tuas chegadas, intencionalmente, procurava esconder-me, por uns segundos, atrás de um qualquer pilar, para não me veres da janela da carruagem. Fazia-o numa espécie de prazer, gostava de ver o brilho do teu olhar marcado pela ansiedade e a surpresa. Quantas vezes, na tua chegada, muito a custo me controlava para não te abraçar e rodopiar contigo nos meus braços. Percorríamos a distância até ao carro num ápice, e aí, trocarmos um beijo prolongado, carregado de saudade, antes de decidirmos o que fazer a seguir..
A história repetia-se, em todas as tuas vindas, mas nunca foi rotina, ampliávamos esse tal querer, essa vontade de estar, e viver as horas, esgotando a saudade. Depois, na partida, gerava-se uma espécie de mutismo, entre o querer partir, porque necessário e o meu querer que ficasses. 
Hoje, que já não vens, a tua ausência é dolorosa. Como alguém disse, hoje vou à “estação ver os comboios”, porque não chegarás, trazendo a alegria, a intensidade da permanência. Somente permanece o silêncio da última partida.


dc

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Onde os leva o coração





Ele gordo bonacheirão
Ela gorda bonacheirinha
Ambos se davam a mão
Com sorriso na carinha

Caminham o dia à dia
Sem qualquer direcção
Fazem-no com alegria
Vão onde os leva o coração

Quando por mim se cruzam
A ternura neles transparece
Amores destes não abundam
E quem os sente se engrandece

Os anos por eles não passam
Sempre o brilho no seu olhar
Vê-se que não se cansam
Daquele seu modo de caminhar.

dc

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Um olhar oblíquo




O cansaço se espalha pelo corpo, como a água nas cheias se vai assenhorando da terra nas margens do rio. Entra lentamente e vai aumentando o caudal, até que o seu deslizar e intensidade vai arrastando tudo consigo. Assim é este cansaço longo de viver, de esperar, de não saber o rumo que dar. O corpo pesa, a mente pesa, a vida pesa neste correr de anos de experimentar, tentar no erro e acerto, no acerto e erro, sempre se esvaziando mais, deixando cada vez menos tempo de acerto, aprendendo cada vez menos, azedando, e sem espaço para errar sequer mais uma vez.
O teu olhar torna-se oblíquo de acordo com os livros e revistas que na estante te desafiam. Já não inclinas a cabeça. São os olhos que se entortam na azáfama de encontrar algo que te faça levantar do cadeirão, que te provoque a curiosidade e te faça empenhar em mais uma viagem que não a tua. Tal a preguiça, a ausência de vontade de partir, de fazer cacos, de lutar, de conversar e discutir conhecimento.
Escreves algumas palavras, “botas” sentimentos em letras redondas, em folhas de papel transparente que ninguém tem curiosidade de ler, nem saberiam a fórmula capaz de tornar legível o que expressas.
Tantas vezes como lagarta na couve, vais roendo pedacinhos e entrando no miolo do que em teu redor vive e se agita, correndo o risco de morrer sufocado nesse adentrar no tormento de procura sem resposta. Ninguém quer saber do que queres. Todos têm demasiado, de preocupação e chatice para reparar na tua normal incapacidade, perante a frescura dos que
recorrem à ignorância e se deixam levar pela superficialidade das coisas. Crítico? Talvez, demasiado de ti próprio, temendo a insensibilidade e passar ao lado dos que esperam o teu apoio, mesmo que signifique a dureza das palavras, o sofrer por eles, o de viveres, sem que te vejam e saibam, as dores que lhes ensombram os dias.
Deixa-te ir, lentamente, os dias tornar-se-ão menos pesados. O entardecer assumirá seu caminho, e depois, depois que se lixe, já ninguém saberá quem é quem e tudo irá parar ao caixote do lixo dos objetos amorfos.


dc

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Através das cortinas





Sentada, na sala despida, olha o mar sem fim através da janela. Escolheu o lugar, a casa e aquele mar para seu recato. Saiu do mundo em que nascera e habitara com outros, para viver o seu mundo. Escolheu fugir do frio que tinha, da cidade onde vivera, dos amigos. Nada a prendia, nem aos lugares, nem às pessoas, era andarilho em viagem à procura do seu estar. Estava ali porque sim, na sua solidão, no seu silêncio, no seu gritar. Ria desbragadamente, dançava com qualquer ruído parecido com música, e coloria seu vestir com o florido encanto dos hippies. Trabalhar era para viver, não viver para trabalhar, no quê e no por quê, nem se prendia a pensar.
Como tudo na vida, mesmo que se não queira, as memórias existem e de vez em quando surgem, cada vez mais perdidas da referência, como se fossem estórias contadas de livro. Já não sabe, se sempre foi assim que viveu, ou se agora procura descobrir no só que agora vive, no seu silêncio, aquilo que aconteceu. Começou a reparar cada vez mais naquilo que a rodeia, o olhar tornou-se mais agudo, o pensamento mais célere, sente e vê antes de que os outros se apercebam o que acontece. Aquilo que escolheu como paz de espírito traz-lhe mais “eus” para a sua vida, enchendo-a, talvez de mais, do que não queria.
Sabe uma coisa, quando se come vezes sem conta, uma comida que se gosta, sem que se acrescente variantes, seja no acompanhamento, seja no lugar onde se come, seja com quem se come, acabará por enfastiar. “Somos seres sociais”, pensava ela, nada é para sempre, se fosse não havia razões para que a palavra felicidade existisse. Por isso, ou vive e abdica de algo partilhando e vivendo os altos e baixos, seja do sol, ou intempérie da vivência dos dias, ou morre lentamente, absorvida pelo tédio, nesse só que escolheu e agora já não lhe dá respostas.
Não sendo solução, talvez um animal de estimação aconteça, para preencher o espaço em buraco de ausências. Será que o bichano lhe coçará as costas, lhe dará o caminhar abraçada no areal, o beijo de mel, responderá ao que interroga, chamará o cento e doze? ...


dc