quinta-feira, 30 de abril de 2020

A mosca e eu


A casa está silenciada, nada acontece, os móveis rangem, como sentissem também eles a mudança do tempo, o frio instala-se, O apartamento acontece no último piso, onde o telhado, em mau estado, permite que a humidade penetre no tecido construtivo.
Os livros à luz pálida do candeeiro, silenciosos, são como observadores atentos daquela figura, sentada imóvel de olhos fixos no pequeno ecrã da televisão. Nada explica a sua postura, ou se atenta naquilo que vê. Cenho fechado e braços cruzados, quase impenetrável. É uma espécie de estado de coma, está lá e não está, um olhar preso ao que não vê, nada parece interessá-lo.
Observo-o de cima quase colada ao tecto, vejo-o sem ele me ver, sinto a sua respiração através do vapor que chega até mim. Escondo-me, o mais possível, sem fazer barulho para que não implique comigo e me dê rapidamente um triste destino. No entanto estranha-me o seu mutismo e aquele ar de pedra fria.
Posso passear nos livros descansada, sem risco de ser apanhada. Eu gosto de livros do seu cheiro a papel velho, da tinta, do pó que se deposita e se cola em definitivo ao livro.

Quando encontro um aberto, delicio-me com o cheiro a tinta que ainda resta. Tenho pena de não saber ler, com o mesmo entusiasmo com o dono da casa o faz, possivelmente neles viveria estórias de encantar.
Distraí-me e bati num dos bibelôs cansativos que ele deposita nas diferentes estantes e lugares, por pouco caía em cima dele. Não sei como ele suporta tanta quinquilharia espalhada, guarda tudo o que lhe dão.
Ansiosamente espero que desligue a televisão e cumpra as suas rotinas. Lavar os dentes, fazer a sua higiene intima, vestir o pijama e aconchegar-se aos cobertores. Quando apaga a luz é altura do meu passeio, que me ajuda a desentorpecer. Até que o dia nasça é uma desbunda, percorro todos os lugares da casa de modo ligeiro e repimpo-me com tudo o que são migalhas. Somente tenho de estar atenta à porta do quarto, se surge luz é porque vai ao banheiro e tenho de ter cuidado, interrompendo a passeata e estar atento aos seus pés, se me distraio ele pode pôr fim a minha vida. Isso e o DDT espalhado, por sítios estratégicos para me apanhar em falso, são os únicos perigos que corro até ao nascer do dia.

— Estou feito, a televisão não dá nada de jeito e o aparelho de música logo agora teve que avariar. Tenho a cabeça a funcionar a mil. O telhado nunca mais é reparado e há contas para pagar. O governo a roubar na reforma, emoções à flor da pele, hum! Tenho de encontrar soluções rapidamente. Esta pausa forçada na noite fria e húmida não é agradável, ainda por cima, aquela mosca não larga andando lá por cima naquele seu zun zun, tira-me do sério e do meu silêncio sossegado, tenho de arrumar com ela antes de me deitar. As moscas são sempre a mesma coisa, a merda muda, mas elas ficam sempre, ao contrário dos governos que são todos diferentes e a merda é sempre a mesma, não muda... Não me vou deitar sem lhe tirar a tosse, vai perder o zun zun de vez. Só faltava que na minha casa também fosse vítima de “bullying”, vais morrer sacana! Aos gajos que mandam, só votando contra poderei afastá-los do poleiro, mas contigo, vai ser já agora.

Como tudo o que acontece, na vida sempre haverá dois pontos de vista diferentes. Não imagino o que ele estará a pensar, tenho de estar atenta, pode sobrar para mim a solução para o seu estado de espírito. Cada vez escasseia mais a comida cá em casa, e não é bom sinal, e quando vê no ecrã da TV aqueles grupos de pessoas bem vestidas com uns cartazes na mão, fica agitado...cheira-me a esturro. Eu não faço ideia do que é aquilo, mas o homem perde a postura e agita-se sempre que aquelas imagens aparecem...levanta-se bruscamente e fica vociferar sozinho e mexer-se, ai fujo a sete pés, não vá sobrar para mim.
— Aquela ali, anda a brincar comigo, parece o Passos provocando o Zé, obrigando-o a apertar o cinto, está mesmo à espera que eu lhe dê uma palmada para desaparecer.
Olha para o que me deu, estar aqui a magicar na vida e a pensar o que farei à puta da mosca que me está a tirar do sério.

dc

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