domingo, 29 de setembro de 2024

O primeiro beijo

 

Tenho, a marca de água, na memória, daquele primeiro beijo, que me fez sentir as pernas incertas e quebrar a minha inocência. Inocência, porque ainda nem conhecia o que era beijar, muito menos, um beijo sensual de línguas que se cruzam. Somente, lábios sobre lábios, um beijo tímido, no medo ser rejeitado, antes de se realizar. A sua boca tinha um desenho harmonioso. Lábios carnudos, rosados, húmidos, suaves ao toque, e um sabor abstracto não explicável, mas apetecível, que me atraía, e me fazia repetir beijando, como se a repetição, ousasse, descobrir a magia, daquele momento, ou o sentimento daquele gesto. As minhas mãos seguravam o seu rosto, enquanto observava os seus olhos, no espaço entre cada beijo. Olhos, claros, quase cinza, que adquiriam um brilho tão intenso, que me enredavam, e punham o coração em sobressalto. Poderia eu, explicar todas essas reações, por ser o primeiro beijo, com o enlevo da experiência e da inocência, mas isso, seria desmerecer toda a magia do que acontecera.

 

dc


quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Afinal só quero ser

Eles não sabiam, também não haveria como saber, que dentro, sentia um vazio enorme, que a afastava das pessoas e marcava o rosto, fechando-o, numa espécie de indiferença, que não procurava. Tantas vezes tentou abrir-se num sorriso, ou expressar-se em falas alegres, ou pelo menos, assertivas, sem que isso lhe fosse possível. Os cantos da boca apontados para baixo, marcavam a sua expressão e transformavam a fisionomia do seu rosto. A sua aparência exterior, estava aquém daquele vazio que a preenchia. Não sabia como isso acontecera, nem sempre fora assim. Em tempos fora disputada por amigos e colegas, como companhia divertida, seja na mesa do restaurante, no café, em festas, férias, ou de tertúlias várias, em conversa e debate, fosse de política, ou outras actividades sociais e culturais. O que morrera em si, o que fora que adentrado no seu âmago, tirara-lhe a razão, até de comunicar. Não, não era um “retrato de boa rapariga”, sossegada, que procurava nos silêncios que a dominavam, como uma forma de estar, no meio do outros, isso ela sabia que não. Algo mais profundo aterrador, a submergia, num contínuo de instabilidade e insegurança. Sem a percepção, da razão do surgir das lágrimas, de forma extemporânea, dando lugar a um choro convulso arrasando todo o equilibrio interior. Sentia que cada vez era mais difícil. Quanto mais se fechava, mais longe ficava, de tudo que à sua volta existia, menos vontade de participar no que a envolvia.

Era sua preferência, fechar-se no seu mundo. Sentava-se numa esplanada, junto ao mar, cuja força e imensidão serviam de calmante. Assim, se ia distraindo, ouvindo as várias conversas que chegavam coadas pela brisa, ou observando as pessoas que circulavam à sua frente, lenta ou apressadamente e, em especial, os rostos que reflectiam muito do que as movia. Ouvindo e vendo tudo, sem filtro, nem julgamento, enquanto as gaivotas com os seus voos acrobáticos, sobre as águas a distraiam de tal modo que a convocavam para os seus voos aleatórios, em que as emoções se esmoreciam levando-a à sonolência. Em algumas, dessas ocasiões, tentava descobrir, donde tinha surgido tudo o que agora acontecia consigo, mas era tarefa difícil e enfadonha, recuar no tempo, vivendo e remoendo o passado, para saber deste presente. Era tarefa inglória, há coisas que acontecem fruto de circunstâncias, das quais é difícil discernir, qual a que despoletou tudo o que a abalava. Seria a mesma questão de procurar saber, o que surgiu primeiro, se o ovo se a galinha. Certo. Certo, é que cada dia que passava, se assenhorava de si a vontade, de se livrar de tudo o que a manietava, ser dona de si, e menos do mundo e das regras que lhe queriam impor de fora. Liberdade de querer ser quem era, com defeitos, insucessos, acertos e desacertos, virtudes ou não. Afinal, só quero ser.

dc


domingo, 22 de setembro de 2024

Num lugar chamado terra

Como gotas de orvalho que se desprendem das folhas, assim passa o tempo e os dias, na mesma intermitência. Cada vez mais devagar, sem enumerá-los, ou classificar, apenas deslizam de um para o outro numa rotina detalhada.
Passeia os olhos pela paisagem. Ao longe, o rio corre, entre as margens, com árvores de porte alongando apontando os céus. Ali está, sentado num pequeno banco, à porta da casa rústica, construida com grossas paredes de pedra, com um amplo alpendre construido em madeira.

A natureza é tudo o que rodeia aquele lugar. Esquilos atrevidos, descem e sobem as árvores, ou se aproximam com curiosidade. A passarada alegre, com o seu chilrear, acompanha o marulhar do rio, num ruído sinfónico. Longe está o pesadelo dos carros, dos sons agitados das buzinas das fábricas, dos automóveis, da passagem dos aviões pelo céu, do zunzum diário das multidões movem, do confronto de vivências, da circulação variada de todo um mundo que se chama sociedade. A natureza, o ar puro, os cheiros ricos e variados funcionam como limpeza para a sua mente. Traziam-lhe a calma, a serenidade e disponibilidade para deixar o cérebro livre, para que a intuição lhe orientasse caminhos. Assustaram-no quando dissera que ia para o outro lugar, mais perto do campo e da serra, viver de outro modo. Viver sim, ao sabor da sua vontade. Plantar, algo que pudesse comer, conviver com os animais, beber água que corria, cristalina, entre as pedras. Ler, ouvir música, escrever, pintar. Gritar todos os dias a plenos pulmões sem medo do incómodo de assim se expressar perante a riqueza da sua liberdade. Agora o tempo não contava como processo de aceleração. Somente dias e noites e as mudanças das quatro estações, que lhe serviam para dizer, que tudo continua a evoluir para o fim, neste lugar chamado terra.

 

dc

 

 


terça-feira, 10 de setembro de 2024

A linha que alinha

 

Talvez linha
Talvez ideias em linha

Se alinham ideias
Com as formas da linha
Quando juntas as linhas
Na expressão do corpo

As linhas conformam
Contornam
Sem desconforto
Linha do rosto
Linha do seio
Linha da coxa, da anca
Da vulva no meio
A linha espanta

Dó ré mi sobre a linha
É a linha da pauta
Na música que se canta
Os pontos fazem a linha
A linha justifica os pontos
Esclarecendo a linha
A dimensão dos pontos

É a estória da linha

No mundo dos contos

 

dc
 




quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Sábado ao ritmo de sobrevivência

 


A guitarra eléctrica com o seu som estridente, ressoava no espaço, a bateria não deixava que ela se isolasse num único som. As baquetas rasgando a pele dos tambores; o baixo, tremendo de excitação não se fazia rogado; as congas percutiam debaixo de mãos agitadas, marcando um ritmo latino; no órgão as teclas, mexiam-se como movidas pela ondulação dos dedos, finos escorreitos sobre a sua superfície. Todos os executantes, se tornavam, temerários e avançavam a todo o vapor soltando notas de vida perante estridência que Santana fazia explodir na sua guitarra. Muita gente, enchia o salão, movendo-se em ondas rítmicas, seguindo a vibração positiva que enchia o ar. No seio de todo aquele agitar, um homem e uma mulher, tipicamente latinos, se isso é possível dizer, dançavam, faces afogueadas, cruzavam as coxas, ou rodopiavam em contorções, de corpos colados, ou afastados, movimentos incríveis de sensualidade, acompanhados dos pés voando sobre o soalho polido. Os corpos suados, rostos transformados, olhares esbraseados. Todos aqueles que dançavam, naquele salão, estavam como que possuídos num terreiro de candomblé. Alguns outros de olhos presos no pare que se destacava, abanando a cabeça, mexendo o corpo, envolvendo-se no ritmo. Sábado de descanso. Sábado para derreter a pressão e o stresse da semana, deixando o corpo sobreviver ao ritmo da vida.

 

dc


terça-feira, 27 de agosto de 2024

Só na rua, voltaremos a ser o que devemos ser

 

O confronto, entre nós e nós, é difícil de superar, comparado com o, nós e os outros. É um diálogo surdo, onde a troca de palavras não têm eco, em que os juízos e opiniões ficam soterrados, em dúvidas e silêncio, enquanto traz há superfície, um rosto de expressão fechada, um corpo morfologicamente alquebrado e um caminhar, em que parecemos vaguear. Somos consumidos por dentro, definhando a cada passo, como se uma doença estranha, nos caísse no colo, quando da visita ao médico. Nascemos com essa condição de sermos humanos, sensíveis, viventes, numa sociedade que não escolhemos, num lugar, onde não gostamos de habitar e por vezes, num país de que nos envergonhamos, pelo papel público que representam as figuras que o dirigem. Não sendo neutros, aos impactos, das falsas, ou verdadeiras notícias, com as quais somos bombardeados, para sermos massa macia, moldável aos poderes fácticos, perante a realidade dos factos sociais que se nos deparam, acumulamos impaciência, nervos tensos, alimentamos a contradição entre acção e inacção. Alguns de nós, queixam-se, e esperançosamente, até se medicam, tentando amortecer o impacto de serem cidadãos de um mundo, onde a morte e a vida, são factores secundários, ou danos colaterais, das ambições de alguns. Se não sairmos à rua, gritando, a dor que nos toma, se nos calarmos perante a injustiça, a paciência esgota-se. Só na rua, voltaremos a ser o que devemos ser, humanos com voz activa. Assim sendo, o que nos espera, é a submissão, um colete de forças, ou um autismo do qual não mais sairemos.

 

dc


quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Noite de Lua Cheia


Apontávamos com os dedos, fazendo desenhos abstractos, como se pudéssemos atravessar o espaço e tocar nas estrelas, estas que pareciam depositadas como pontinhos, no céu escuro, tal como poeiras sobre os móveis, na casa que deixáramos abandonada, para sermos observadores do Universo. Como não somos estudiosos dos astros, mas curiosos daquele infinito que na noite se torna tão visível, é-nos permitido divagar sobre a natureza das coisas, ou das coisas da natureza. De preferência, namorando, em noites de lua cheia, com gatos no telhado.

 

dc