segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Uma pausa necessária


Conversador e ouvidor, agora, só tinha o silêncio, o seu silêncio. O ruído existe nos outros e no que o rodeia, mas está fora de dele. Não assimila ruídos, nem imagina ruídos. Os seus tímpanos estão cobertos de cera da indiferença à escuta. Sente-se um surdo de nascença, que lê nos lábios, vê gestos, talheres que se cruzam, pratos que se chocam, copos que se tocam, bocas que se movimentam, beijos de diferentes intensidades, mãos que se agitam, sorrisos e pretensas gargalhadas. Sente uma ausência tamanha, como se estivesse suspenso sem gravidade, estava, tal qual, no cinema mudo de outrora. É uma total ausência de estar, uma suspensão de vida, é um silêncio de necessidade, que ninguém interrompe, que o faz fechar a boca e não pronunciar qualquer ruído. É bem possível, que o motivo esteja errado, ou seja, o receio de falar sem acerto, que o faz isolar, sem dizer aos outros que não está comunicável. Tem de fazer uma pausa para se reencontrar, descobrir como falar correto, sem magoar, ofender, ou alimentar debate inútil do saber, ou de ter, a pretensa razão. Precisa do estímulo certo para um dia voltar aos ruídos, às palavras e à escuta, que por agora enfadonha e um pouco desestimulante, lhe tirou a curiosidade, a paciência e o prazer da conversa.

 

dc

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Na sozinhês do banco de jardim



Gosto de me esperar, único, na sozinhês do banco de jardim. É domingo, a manhã está amena. Observo de modo meditativo, as árvores e as flores sobre o jardim, os pássaros, que neste meu esperar silenciado, me acompanham com o seu cantar melodioso, e não sabem, muito menos, adivinham, o quanto me fazem companhia e alegram. Fascina-me a sua graciosidade, o seu saltitar, nervoso e dinâmico, sobre o tapete de relva, ou o seu voo fugaz para a árvore mais próxima. Todos parecem iguais de morfologia, mas distintos na cor e desenho bem diferenciado, como que cada uma das suas “famílias” se identifica. O melro, que do preto só se distingue o seu pequeno bico e as rosadas patas; o pintassilgo de roupagem colorida, a poupa, encristada em cores sóbrias, a pomba acinzentada que parece ronronar, o raro canário amarelo de cantar distinto, e nos dias de hoje a predadora gaivota, fugida do mar e das docas, se passeia pela cidade, onde esgravata dos seus lixos abandonados, na busca de comida que no mar já não encontra.

Tudo isto neste esperar pacífico, onde estou, tal estátua, indiferente para quem me vê. Invisibilidade que leva ao engano, a pomba breve junto aos meus pés e o cão surgido, que se encosta de necessidade na minha perna, logo fugindo de espanto perante o meu prolongado, shiiitttt. Chegam até mim, trazidos pela brisa, aromas dos diferentes comeres das casas próximas, vêm enunciando, o menu melhorado, domingueiro. Vêm matizados com os odores do jardim, uns de refogados de cebola, estalando, outros de assado de carne melhorado, ou peixe grelhado. As vozes das gentes, que ali habitam, diluem-se em murmúrios entrando pelos ouvidos, rompendo o ar com facilidade. Enquanto isso ruídos dos carros da cidade se esbatem na lonjura. Adivinho naquelas casas, os banhos matinais domingueiros, apurados pela ausência da pressa, as barbas que se desfazem com cuidado, as mulheres que se perfumam e cuidam do seu rosto. Todos escolhendo cuidadosamente as roupas que saem da rotina do trabalho e surgem como a estrear. Como se à missa, todos tivessem missão por ir. Também posso lobrigar, muitos outros que se aproveitam, do lazer possível, e desfazem o tempo como lhes apraz, abandonando-se num desmazelo procurado, de indolência, tudo feito a desoras, distraindo-se a ver televisão, ou até um possível sexo gostoso e assim quebram a rotina do trabalho da semana.

Sinto-me num domingo adormecido, como aqueles que premeiam a Páscoa de todos os anos, com nuvens que se misturam na leveza do céu, brancas e cinzentas, que o sol vai furando em entretantos. Este é um domingo sem falas, nem interrupções, neste meu observar e pensar, onde também eu me cuido estando só.

 

dc


terça-feira, 27 de setembro de 2022

Ausência

 

Acredito que a saudade não mata, caso contrário há muito estaria morto, tal a falta que me fazes, a cada minuto que o calendário vai levando da vida.

dc


segunda-feira, 5 de setembro de 2022

O sapo nem tempo teve de virar príncipe.

 


Os olhos brilham, um meio sorriso aflora-lhe os lábios cor de rosa, mostrando levemente os dentes certos e bonitos. O cabelo loiro, quase branco, encaracolado e comprido, cai-lhe sobre os ombros. Tem um casaco de malha cor rosa, muito suave, que a veste por cima da camiseta, aconchegando o corpo.
O almoço depois do banho de mar, num pequeno restaurante, acompanhado de vinho branco e sobremesa, desenrolado com agradável conversa, deixou-os leves e bem-dispostos. Pagam e saem.
Vão passear num pequeno jardim próximo, quando chegam, poucos passos andados, ela coloca a écharpe, de tecido leve, sobre o chão e deitam-se nela, sobre a relva. Olham o céu azul sobre as suas, cabeças bem próximas sentindo o vibrar dos corpos, com risadas e disparates que vão dizendo, vivem o momento. Sente-se a intimidade e a liberdade de estar, a alegria diz-lhes que o tempo não existe. O mundo pára em redor, só eles, são, o restante é cenário a compor a imagem.
Podia ter sido para sempre, mas ficou por aí, tal é o medo que se gera quando nos parece bom de mais. Naquele jeito bem português de ter medo de viver a felicidade quando esta nos toca, logo se foram inventando, ou desconfiando razões, matando desde logo, a probabilidade, sequer, de poder dar certo. Encontram-se logo prumos, paredes, materiais de isolamento do quotidiano, do passado, de uma outra gesta e usam travões às quatro rodas levantando os obstáculos, que nem sombra fazem no chão.
Saíram do jardim, os óculos escuros fixaram-se na cara, o negro visível fechou as portas ao futuro. O sapo nem tempo teve de virar príncipe.


dc


quarta-feira, 24 de agosto de 2022

A tua boca

 


A tua boca é sempre o esboço do que está para chegar, é o prelúdio, de um prazer maior, é um registo que se cola na memória da pele, que nos deixa o sabor a pouco, do muito que ansiamos ser feito. Tantas vezes, somente um toque suave dos lábios e outras tantas, com a humidade das línguas se tocando tacteando vontades, descobrindo outros lugares de resposta do nosso corpo, satisfazendo desejos, abrindo caminho a lonjuras maiores, a afinidades subtis, a cheiros e registos eternos, que serão memória e saudade, segundos após se realizarem.

 

dc

 


segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Além das aparências


Sabia que ela era uma mulher, da área das leis e muito responsável, que trabalhava imenso, sem perder o foco. Quase diria obcecada, atitude essa, onde não sobejava tempo, para ter, o seu próprio tempo. Esse seu modo de ser, levava-o a pensar, se não seria por ela temer, voltar a envolver-se física e emocionalmente com alguém; uma espécie de fuga para a frente, evitando confrontar-se, ou de libertar-se, dos espartilhos que a si própria colocava. A ser assim, difícil seria encontrar o amor que tanto ansiava, ou melhor, procurava alcançar. E seria bem possível, que o outro, nela interessado, se lamentasse: preferindo que fosse uma ladra habilidosa, sem medo de ser presa, fazendo tudo, para o ter sempre perto dela. Atrevia-se a pensar, se realmente, alguma vez, ela teria arriscado, a conhecer efectivamente alguém, a sério. Temeria enganar-se na escolha, na expectativa, na figura de preferência, como se na escolha do vinho, no vestido inadequado, do sutiã fora de tempo, ou sem ele? Quantas vezes, teria ousado, usar a linguagem mais vulgar na intimidade da cama, dando azo à imaginação, despida de pruridos balofos, deixando o corpo surfar na onda do desejo, sem medo do que o outro pensa, deixar que aconteça, sem perda de tempo, sem julgar o que ainda nem começou? Alguma vez aconteceu o beijo espontâneo, a mão que acaricia, debaixo da mesa, quando os olhos sorriem marotos? Alguma vez, andou pelas ruas, de mão enfiada no bolso traseiro das calças dele e ele nas dela, rindo pelo prazer, da intimidade do gesto, no aconchego de sentir os dedos na carne?
Sem erros, a realidade seria sensaborona. A fatídica certeza, traria a loucura, seria ausente do prazer da aprendizagem, nos diferentes obstáculos no caminho que se percorre, ou do gozo da concretização, ao alcançar objectivo traçado e o sabor da sua conquista. Somos vítimas, de prisões intelectuais, do sistema ridículo, que nos impõe as cadeias de comportamento social, que nos diz o que devemos, ou não, fazer. Tememos o julgamento dos outros, deixamos de ser quem somos, para sermos aquilo que os outros propõem que sejamos, mesmo quando nos apetece correr pelas ruas à gargalhada, ou balançando os braços de mão dada, como se pêndulos, brincando a embalar o amor que nos domina. Tantas são as vezes, que nos apetece sentar no baloiço da nossa infância, sem receio da idade, ou vergonha, que nos limite, e vogar naquele vai e vem que nos tira os pés do chão, para podermos sonhar. E, porque não?


dc

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Na praia a sós


Lado a lado de mão dada, vamos andando para o longe; vagueando, tacteando o chão de areia, que se afunda sobre os nossos pés. Vamos ao encontro de um espaço vazio, longe de outros olhares, que não aqueles que devotamos a nós próprios. Fugimos do rectângulo diminuto que nos sobeja, onde proliferam os guarda-sóis, os corpos esparramados, preenchendo o areal, como se não houvesse amanhã, e, da escuta cusca, ou da agudeza, rebarbativa, de algumas conversas pessoais, das quais teremos de ser ouvintes forçados. É a busca consciente, dum espaço, outro, que nos permita o silêncio, ou somente o som das nossas vozes. Queremos ficar libertos do espartilho das vestes e de acessórios desconfortáveis. Ali, nesse lugar de nenhures, onde a natureza é um delicioso lugar de estar, que nos liberta os sentidos, onde se pode gritar em voz alta o que cada um sente. Ali, os corpos com as costas tocando a toalha imensa da praia, expondo a nudez do corpo e da mente, sobre o sol escaldante e onde pudemos banhar o corpo na água do mar, como recém-nascidos. O tal lugar, onde os corpos não são vítimas de escrutínio estético, alheio, se podem beijar e tocar, ou até se permitirem a que o amor se faça, com a mesma fluidez, com que a água do mar banha o areal. Depois, perdida a noção temporal, será o fim de tarde, se arrastando, que nos dará a noção do regresso ao lugar de partida, acompanhando a retirada do sol, que vai repousando na linha do horizonte, para o descanso do dia.

 

dc