quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Adormecemos a contar beijos




Na noite que chega, eu abraço-te, estás segura nos meus braços, como se eles fossem seu abrigo. O Seu corpo treme quando sente os meus lábios nos seus. Aproximo a minha boca do seu pescoço, que beijo enquanto acaricio o seu cabelo. Eu sinto pela pele como se as minhas mãos estivessem sempre nela. Num registo quente da urgência de nos possuirmos, antes que noite nos leve para os sonhos. Não hesitamos em procurar um pelo outro, um sobre o outro, no beijo molhado, nas línguas ousadas e nos olhar. Sem pressa, ousamos explorar, todos os lugares onde a boca anseia e a onda de prazer nos leva. Vamos nos desfrutando, até que a explosão dos sentidos chegue, uma espécie de vulcão em erupção inunda-nos marcando os lugares do corpo. O sono vem e prolonga nos sonhos o que foi vivido. Adormecemos a contar beijos.

dc

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Gestos e palavras



Na míngua da materialidade dos gestos, dos sons, do olhar, olhos nos olhos, dos cheiros e das formas, recorremos às palavras e estas em alguns casos excessivamente superlativas, em outros se perdem num relato incompleto dos sentimentos. As palavras e frases, mesmo que ricas de expressividade, apagam-se, ou podem ficar eternamente esperando, a sua leitura. Escrever e ler, conhecimento da língua, exigem ginástica mental, interpretação de pontos de vista, o que se pretende quando se escreve, resumindo uma forma intelectualizada de conhecimento e reconhecimento. Não que seja mau, mas traz demora ao sentir.

“Ao sair de casa deixou um papel escrito, despedindo-se, “até mais logo, meu amor”, colocado na mesa visível da sala. Teria preferido que ao sair tivesse-me acordado, e mesmo de olhos pouco abertos, saber-lhe-ia melhor, aquele beijo nos lábios, aquele abraço que traz o fresco da manhã, o cheiro e calor do corpo, mão em concha na face, numa carícia cheia de ternura. Isso sim, seria um registo mais profundo, preso à pele, marcando os sentidos para o correr das horas. Não foi sua a escolha, podia até parecer falta de reconhecimento, mas aquelas palavras escritas, não substituíam o sentimento de falta e um vazio inexplicável, que nem a riqueza das palavras superava. Talvez só a sua silhueta no contra luz da porta num aceno, fosse mais plena, pensou para si. Sempre dizem que “uma imagem vale por mil palavras”

As palavras serão talvez melhor registo de memórias interpretadas. Uma estória, uma herança de gestos que se imaginam, ou uma explicação de de sentimentos, mas tantas vezes perdem o significado fechando-se, em si próprias.

dc

"Se olharmos as coisas de perto, na melhor das hipóteses chegaremos à conclusão de que as palavras tentam dizer o que pensamos ou sentimos, mas há motivos para suspeitar que, por muito que procurem, não chegarão nunca a enunciar essa coisa estranha, rara e misteriosa que é um sentimento."


José Saramago

domingo, 11 de novembro de 2018

Pela manhã



…no encontro quase furtivo, de todos os dias num tempo reduzido, soltamos as palavras, e deixamos os pensamentos que dentro do peito se constroem. Curto o tempo, grandes os desejos e vontades expressos. É o amor em estado puro. Não platónico, porque a linguagem traz a vontade do corpo, Antes temporariamente adiado. Agora o amor imprevisto, que se descobriu no primeiro falar e se alimentou neste saber esperar.


dc

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Na palma da mão




Ela dissera: a sua outra “alma gémea” está numa fronteira longínqua que quase lhe poderia dizer a cidade e com algum tempo de espera lhe diria o país. Era a voz da cigana, ao ler-lhe a sina nas linhas da mão, que de surpresa aprisionara entre as dela. Cuidado continuava ela: será um intenso amor, quase alimento e só ar para viver. Se caminharem até lá será uma vida para sempre. Quererão estar juntos, sempre sem tréguas.
O preconceito propõe a dúvida na cabeça das pessoas. Quem acredita na voz da cigana? Deu-lhe a moeda e fugiu da sua presença, caminhou algum tempo pensando: Como pode alguém, dizer tal coisa e trazer a dúvida, à sua existência de todos os dias e alimentar sonhos. Não qualquer coisa, mas traçar o seu destino num amor com futuro. Na realidade, não era difícil para a cigana dizer o que as pessoas gostam de ouvir, sofrem, umas mais outras menos, da carência e incerteza, desse tal sentimento que chamam amor. Ela, afinal, dava a todos o que queriam ver preenchido, ali tão fácil, na palma da mão. Se o “destino” se cumpria, já não era seu problema, cada um desse a si próprio a oportunidade de acreditar ou não.

dc