quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Bate leve


Esperava o bater na porta, e ao abrir esquecer todo o tempo passado sem ti. Olhar-te e reconhecer-te de ontem, não dos dias perdidos sem nos vermos, como se a memória se fundisse nos tempos. A virtude estava neste amar imorredouro, que permanecia como se fosse a minha pele. Bate de leve, é suficiente, o teu perfume vem com o vento antecipando a tua chegada.

 

dc

 


segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Reflexo na água

 

Mergulhava no reflexo que a água lhe devolvia. Ficava absorto, avaliando o mistério das duas existências. Uma real, crua, humana quanto baste e uma outra liquefeita, nas nervuras da água, procurando ser. Uma dependendo da outra, e tão longe daquilo que ambas significavam. Uma mera representação com as falhas de perfeição, mas mais verdadeira do que a outra, pretendida limpa e sem defeitos, na verdade, até mais hipócrita, pois ninguém seria tão perfeito assim. O mistério se mantinha, perante a dificuldade de entender, quais as leis físicas que produziam aquela imagem no espelho de água. Não era uma ambição narcisista de ser belo, mas sim, ver o melhor de si, numa visão total sem ângulos cegos. Tinha de aprender a aceitar-se nas imperfeições, essas que não trazem a cobrança sobre o seu modo de ser, nem o olhar adjacente de censura, nem o ónus do medo tão humano de errar. Perseguir o objectivo de ser perfeito, seria sujeitar-se ao escrutínio e vontade dos outros, correndo atrás do que não é seu, só para ser amado, seria excessivo, tirava-lhe a liberdade e autonomia de tomar as suas próprias decisões.

 

dc


terça-feira, 30 de novembro de 2021

No calor do muro


Encolhido, como uma pequena bola de penugem, os seus olhos diminutos pareciam interrogar a minha presença com a máquina em riste. Desconhecia ele, a sedução que exercera sobre mim, desde que sobre o muro pousara aquietado, indiferente, aos que como eu, sentados na esplanada, aproveitavam o sol de inverno para superar o frio. Possivelmente, ele procurava o mesmo calor com que o sol presenteava o muro, talvez fosse cansaço, ou a penugem fosse insuficiente para o proteger. Apetecia-me agarrá-lo com as mãos, trazendo-o para perto do peito, no interior do meu sobretudo, como se de uma criança se tratasse e quisesse proteger. Pensamento, somente isso, nunca me permitiria tirar-lhe a liberdade de voar e escolher onde se acolher. A natureza emociona-nos e faz-nos apreciar, como estes pequenos nadas, obtêm uma dimensão maior, afagando-nos o coração.

dc


segunda-feira, 29 de novembro de 2021

No abraço do amanhecer

 

Os dois deitados, nus, fazendo conchinha. Ele sentia o cheiro dos cabelos dela, misturado com outros cheiros adocicados, trazidos pelo bafo morno dos corpos entre os lençóis. Ela dormia e a sua respiração era calma e profunda, como uma criança livre, desregulada das normas da sociedade. Com a sua mão livre, ele percorria o corpo dela, contornando os seios, o abdómen, as coxas delineadas, como se procurasse mapear cada detalhe para ser memória em caso de ausência. O corpo já restava saciado, era o prazer do toque e a ternura, que faziam a necessidade do gesto, numa forma de amor silencioso. Ela no subconsciente sentia-o e enconchava-se mais, como o sonho dentro do sono. Aquele abraço, era como um casulo confortável e protector de onde sairia renascida. A relação que viviam, não tinha um contrato em papel assinado, estavam unidos pelo querer e liberdade de permanecer. Conheceram-se sem pontos e virgulas, se havia interrogações não se colocaram, tudo sem imagens culturais, ou evidências físicas pré-estabelecidas, foi tudo de origem, sem imitações, uma troca de olhares, conversa versátil e prolongada, uns dedos que se tocam, um cabelo que se agita, uma gargalhada que se solta. Tudo o resto, tem sido um filme sem realizador, sem enquadramentos ou sequências planeadas, tudo feito na câmara imaginária, à mão livre, tentando de ser felizes, seduzindo-se mutuamente, produzindo o conteúdo dos dias, voando sem metas no horizonte.


dc


 

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Vontade de viver o dia

 

As palavras eram insuficientes, para descreverem aquela iluminação solar que verrumava o céu de tons alaranjados, ou o contraste, das sombras que dominavam o chão de folhas caídas e os carros estacionados na orla dos passeios. Completando o cenário a gaivota estática se desenhava em contraluz, pousada num dos candeeiros, sensoriando no horizonte, o mar bravio donde fugira, por ausência de peixe gordo que a fizesse mergulhar. Ali, no topo do seu mundo, ela esperançava o lixo, que o contentor pudesse transbordar, buscando apaziguar a fome, concorrendo com os sem-abrigo, que brevemente sairiam dos colchões cartonados, instalados na soleira duma porta qualquer. Entretanto, ouve-se algures, o badalar das sete horas da manhã. O sono que ainda trazia no corpo, se esvaecia agora nas tonalidades, que lhe traziam espanto e arrimo, quebrando a rotina. Era o começo de um dia de outono sem temores de vento agreste, da chuva e gelo. Os olhos perdiam o horizonte, agarravam-se ao colorido que observavam e transportavam para dentro de si calor, alegria e vontade de viver o dia. Assim pensou: vale a pena aqui estar, neste soalho alcatroado, porque a dureza das coisas da vida, não retira a vivência das belezas do mundo.

dc


quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Labirint'ando

 

 

Foi à procura do papel da sorte, na míngua de respostas para os azares, que na porta batem, mesmo sabendo de partida, que a sorte dá trabalho. Não pensava em infelicidades, antes nos muito falados algoritmos, como se diz agora, que não acertam com prontidão. Cansava de esgravatar escolhas, com preciosismos assoberbados, sem atender ao presente, amarrado aos sonhos e desejos do passado e imaginando diferentes, futuros possíveis. O quotidiano de silêncios no prolongar do tempo, para não exibir fraquezas, nem faltar discernimento para suportar ausências, resultou-lhe em rouquidão. Na busca da diferença, chamada sorte ou trabalho, caminhava ele com os olhos assentados no chão, debulhando cismas e razões de sustento, de uns tantos infinitos problemas, concluiu que precisava caminhar sossegos e descaminhar incertezas. Azar e sorte são elementos de estatística, mais servem de escusa, para a falta de decisões.

 

dc


quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Di'vagar'

Escrevo-te que és agora somente saudade, para me aconchegar do amor de ti, que ainda mora em mim. Não é minha preocupação a fluidez da escrita, nem o seu rigor de pontuação ou o acerto das palavras. É antes uma performance, um acto de escrever obedecendo ao pensamento inconsciente, expresso no gesto da mão, que vagueia pela superfície do papel formando palavras. Palavras estas, não de esperança, ou de espera, antes hieróglifos desenhando sensibilidades, trazidas da memória para o hoje, entretendo os silêncios. A distância instalada no tempo e o seu lugar de acontecimento, há muito deveriam ter calado, bem fundo, esse sentimento de perda e ausência. Contrariando vontades, acontece uma flor, um brilho do sol, um simples felino cruzando no caminho, um corpo que se assemelha, ou até, uma paisagem vivida, a fazer questão de trazer tudo ao presente, como uma espécie de “déjá vu”. Escrevo-te, não te escrevendo, somente me devotando a fazer das memórias um acto de catarse, que se solta pela folha de papel, largando tinta, diminuindo o espaço branco, com formas grotescas que se querem letras e palavras, sem que cheguem a ser frases. É algo que nunca lerás, como muitos outros escritos perdidos, ou até, logo rasgados sem que a razão o explique. Importante era o seu significado como objecto, como um limpador de memória, que as vai reduzindo a um simples ponto na imensidão da matéria pensante.

 

dc