sexta-feira, 23 de maio de 2025

Quem não queria...

 

Via o tempo a passar. Onde estava o tal amor indescritível de estória de filme, que ela desejava viver. Tinha esse sonho desenhado em imagens e pormenorizado, em todos os seus passos. Diziam-lhe: “o amor está dentro de nós”, mas, na verdade, não pensava assim, era fora de si que ele seria encontrado, e depois transportado para dentro. Na sua mente e na sua sensibilidade, convencera-se que só sentiria esse verdadeiro amor, quando um alguém especial lhe desse um abanão. Só assim acreditaria, ou saberia se ele estava dentro de si. Adorava os silêncios que sombreavam os dias, que lhe permitem pensar e olhar com alguma distância para o que a rodeia, no entanto, gostaria muito mais que esses silêncios fossem acompanhados por um coração vibrando com o seu, em sintonia. Vivenciar, de mãos dadas, com a energia desse sentimento, que adivinha, a faria tremer por dentro e arriscando, sem saber nem avaliar, o que de bom ou mau pudesse acontecer, sem preocupação com futuros.
Tantas vezes dava por si, olhando as mãos, imaginando a corrente de energia que poderia passar delas para outras que a elas se colariam, de dedos entrelaçados, como gavinhas no arame de suporte, ambos desfrutando o pôr-do-sol de um fim da tarde, sentindo afagos, beijos molhados e palavras ditas com o olhar...e o tempo a passar.

 

dc

sexta-feira, 16 de maio de 2025

Dar um tempo

 

O tempo não se dá, essa é uma ideia que morre, mal se pensa que se pode dar tempo. Traz desde logo, em si, julgamento, em relação ao momento, por insuficiente, demasiado, perdido, tudo isso, mesmo sem saber em relação a quê, e porquê? Afinal que tempo se dá, se interrompemos o tempo, que só existe no conhecimento, ou reconhecimento, da sua presença. Na realidade dar um tempo, é uma forma subtil, de fugir à responsabilidade do que se assumiu, ou não assumiu, de analisar, ou não analisar, talvez até, fugir à oportunidade de esclarecer, das vantagens, ou desvantagens, de “perder” ou “ganhar” tempo, ou o que implica essa decisão. Se dar tempo, tem como objectivo a qualidade de viver o tempo, desperdiça-lo é impedir de viver e aproveitar todos os milésimos de tempo presente, antes de ser passado.

Dar um tempo, será uma afirmação inconsequente, cujo o efeito, à partida é uma objeção, baseada no medo, nas circunstâncias sentidas e vividas, impondo o facto consumado, a um desentendimento, ou instabilidade emocional, no presente, com consequências no futuro próximo.

dc


domingo, 11 de maio de 2025

Porque a vida acontece.

 

Começou com um quero, com a força, dos sorrisos carregados de promessas, que se perderam fáceis de sentido, perante um simples grão de areia, trazido pelo vento no seu correr.
Foram pouco mais de setenta e duas horas, debruadas de palavras de encanto, criando cenários, colados num poderoso sentimento positivo, resumindo tudo, na força do eu quero(!) desenhando horizontes. Setenta e duas horas passaram até que o grão de areia, invadisse a consciência, e tomando-se de razão, impediu, a viagem ao LuAr em alto mar.
Desfeitas as perspectivas, que aquele mísero grão de areia interrompera, a única coisa que restava, era regressar à terra e não deixar que o fracasso do empreendimento, deixasse marca. Caminhar, seria o modo de procurar acalmar e encontrar respostas. Podia distrair-se olhando em volta, fixar-se em pequenos pormenores, esquecidos no comum dos dias. Entendera necessário, esse ir sem destino, para que a manhã se alongasse, afastando de si o fracasso da viagem e os seus fantasmas. Assim, o pensamento vagueava, sem se fixar demasiado na dor fininha, que adentrava bem fundo. Os pés pareciam fluir, de um passo ao outro, com firmeza, mantendo o equilíbrio do corpo, pronto a enfrentar o vendaval de agitada loucura e emoções. Sentia-se um monge de Shaolin, deslizando os pés sobre a folha de arroz, sem deixar rasto. Queria ser invisível, ao outro mundo que circulava perto, ganhando tempo e espaço para perceber, que ainda há a pessoas que acreditam no ser humano, nos seus erros e acertos, alegrias e tristezas, sem desistirem fácil do seu, quero, como desejo, como força de vida.
Porque a vida acontece.

dc

 


sexta-feira, 9 de maio de 2025

Ao primeiro acordar


A memória atraiçoa-me. Coisas boas ocorrem-me, encho o peito, a vontade de expressá-las em voz alta é enorme, no entanto, fogem-me as palavras, e pela boca, saem ruídos desconexos que ficam longe de expressar o que sinto, longe do que eu gostaria e deveriam ser.

O que dizer, do que sentia, ou explicar a doideira do que aconteceu, naquela conversa, que não era pensada interromper. Na aparência, as frases pareciam banais, o vocabulário, não fora escolhido, além do que seria normal(?), mas, suficiente libertador de pensamentos diversos, dúvidas sem resposta, descoberta de sentido das coisas, que agitavam as borboletas. Na verdade, tudo se foi desdobrando e ampliando, com as palavras, dizendo mais, nas entrelinhas, do que o sentido comum, colorindo sentimentos, vidas, sorrisos, mimetismo de sentires. Sem querer, foram colando as frases. No fim das falas de um, o começo das do outro, não havendo lugar a qualquer raciocínio consciente, que lhe tirasse a espontaneidade. A ânsia de dizer, antes que o sentir se perdesse, prevaleceu sobre o que foi escrito, sem julgar a justeza das palavras. O tempo decorreu, não havendo percepção da sua duração. Tanto foi dito, que o espanto, ficou adentrando, pela noite, até ao primeiro acordar, surgido do nada, que trouxe a insónia. O seu sorriso alimentava o sonho, e quase o via existir do outro lado. O primeiro pensamento do dia, trouxe-lhe à memória, o sorriso, e os óculos brilhantes onde se escondia o mundo, que tanto queria descobrir. E pensava: que seja bom enquanto dura, e que seja eterno.

dc

segunda-feira, 17 de março de 2025

Preso no horizonte

 

Resto, imóvel, preso no horizonte, onde aguardo o surgir. Medito, não sei, é uma letargia estranha que me atravessa, é um daqueles momentos em que há posteriori, dizemos que foram segundos, onde milhares de pensamentos ocorrem.

Sinto-me parado no tempo, isolado do mundano. Sinto-me água, brisa, cheiro, a ganhar alento, neste encontrar-me bem por dentro, bem no fundo. É incrível este sentir, que me liga à natureza, e me faz sentir ínfimo, perante a sua grandeza. Os meus problemas existênciais, são variados, no entanto, não tão graves, comparados com os demais, do mundo que me rodeia. Ladeado pelo mar de um lado e as árvores do outro, escolho a leveza da alma lavada, deixo a mente navegar sem amarras, livre para avançar na descoberta desse desconhecido, que tantas vezes o medo condiciona. Sem caminho, sem percurso destinado, ou a estabelecer, sinto uma energia e vontade que me torna capaz de recomeçar num qualquer outro lugar.

As gaivotas rareiam, sobre o mar calmo, os pássaros no seu voar chilreiam, como ensaiado coro, tudo combinado em baixa sonoridade. Da brisa, as árvores estremecem, num arrepiar de prazer, o ar traz-me o cheiro da terra, que se mistura a intervalos com o da maresia. Tudo é sereno neste meu estar. Não sei se o mundo finou, ou se fui eu que me isolei o suficiente. Na verdade, viverei do sol enquanto ele existir. Reconhecerei o vazio sem medo de o viver. Aquilo a que chamam civilização, não é um lugar de agrado, é somente onde me despejaram sem me consultarem, onde me emparedaram, com leis e absurdos, de mentes perversas que pensaram por mim, sem saber de mim, como se a natureza já não fosse suficiente para me fazer crescer limpo de invejas, materialidades e muitas outras coisas desnecessárias. Por vezes, temos de deixar de ser, para renascermos com outro espírito, com mais capacidade e resistência para sermos nós.

 

dc


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Dia de São Valentim..talvez

Chegou na esplanada e sentou-se numa das várias mesas. Levantei a cabeça, olhei de relance e vi-a. Cabelos com madeixas, loiro e castanho-claro, esvoaçando, um sorriso bonito com um trejeito meio irónico. Os olhos eram grandes, esverdeados, desafiadores, quase falavam. Tentei regressar à leitura, mas não consegui, aquele rosto, pairava na minha mente. Já vira aquele rosto e aqueles olhos em um outro lugar. Tirei os olhos do livro e observei-a, agora com mais atenção, num fogacho fez-se luz. Aqueles olhos e aquele rosto, tinham-me ficado na retina uns dias antes, quando subindo as escadas para o meu apartamento, no regresso do ginásio, deparei-me com ela varrendo as escadas. Ao ver-me, para eu passar, parou o que fazia, olhou-me com aqueles dois lagos, como se quisesse que neles mergulhasse. Tal foi a intensidade daquele olhar, que o retive durante o tempo em que tomava o duche e prolongou-se até este momento tomando café na esplanada. Procurei voltar à leitura, quando ouço uma cadeira a arrastar-se, e, julgando eu ser a da mesa ao lado, elevo os olhos e vejo-a, a sentar-se na minha mesa e ficar em silêncio, mantendo o sorriso. Ficamos os dois calados, os nossos olhos se fixando, um no outro, descobrindo o insólito da situação. As palavras não surgiam, a boca estava seca, as mãos quase largaram o livro, entretanto ela cruzava as pernas, que se pressentia debaixo das calças justas, serem exuberantes. Ali estava ela como se fosse algo normal sentar-se à minha mesa. Não resisti, não interrompi o mutismo dos dois, mas ganhei coragem, levantei-me, coloquei suavemente, mas com firmeza, a minha mão sobre a dela e procurei que se levantasse. Sem trocarmos uma palavra, somente as mãos se deram, ela seguiu-me sem questionar.
O meu apartamento ficava a pouca distância e para lá me dirigi. Enquanto caminhávamos ia observando o seu perfil elegante, pernas compridas numas calças de ginástica, justas, um top branco que deixava ver uma parte da barriga lisa. No seu rosto, não havia qualquer vestígio de tensão, na sua boca o sorriso acompanhava a ironia que se via no fundo dos olhos. Abri a porta de acesso às escadas, parei no hall de entrada, virei-a para mim, olhando-a bem dentro dos seus olhos, beijei-a, sentindo os seus lábios macios, quentes e ligeiramente molhados. Foi como se o mundo tivesse parado naquele instante e tudo o que nos envolvia desaparecesse, éramos só nós. Uma eternidade depois, recuperamos a ideia de subir as escadas. Coloquei a minha mão nas suas costas e enquanto subimos as escadas, íamos fazendo paragens para nos beijarmos e nos tocarmos, como dois amantes generosos a usufruir ao segundo. Abri a porta, entramos de roldão no apartamento e ela sem hesitar deixou-se ir, como se dona da casa fosse. Espantava-me o seu silêncio, o sorriso, agora interrogativo, mantinha-se na boca entreaberta, onde o batom quase desaparecera, e o seu olhar de água ficara mais intenso, como se lesse as minhas intenções. Aos tropeções, as peças de roupa voando em todas as direcções, estatelámo-nos na cama, ainda por fazer, do meu quarto. Começamos a sinfonia de outono, inverno, primavera e o estralejar da consumação do calor de verão. Não houve palavras, que pudessem ser registadas, nenhum de nós estava capaz de o fazer, mesmo nos ouvindo, sentíamos a urgência dos corpos se doarem. A sua boca era doce, tinha um hálito quente, que se sentia na agitação da língua, enquanto as mãos faziam conversa, procurando as palavras sobre a pele dos corpos, o seu rosto ia mudando de expressão a cada momento, do espanto ao gozo.
Não sei o tempo que decorreu até sossegarmos e sentir a sua cabeça sobre o meu peito e os seus lábios roçando a minha pele a cada respiração. As nossas pulsações diminuíram o seu ritmo. Sentia o cheiro a lavado do seu cabelo, ainda húmido; um perfume suave emanava do seu corpo. A mão aberta, de dedos esguios, repousava sobre o meu estômago, os seus pés, perfeitos de unhas pintadas de um vermelho bonito. O seu peito não era muito grande, mas perfeito, esmagava-se sobre o meu. Absorvido pelo que via, arrepiei-me ao ouvir as primeiras palavras, surgirem da sua boca, num tom meigo e rouco, como perguntando e sabendo a resposta: poderíamos ficar para sempre ligados, como a tua pele que agora se cola na minha, não?… Será isto o amor à primeira vista? Estou aqui como sempre fosse este o meu lugar, conhecemos os nossos corpos como se tivéssemos o seu mapa colado na memória dos dedos, no prazer das trocas de carícias, nos cheiros partilhados, na calma que agora nos acalenta, distante do mundo lá de fora.
O calor do seu hálito fazia-se sentir sobre a minha pele, enquanto falava, perturbando-me o raciocínio. Levantei-lhe o queixo, os meus olhos mergulhando nos seus, ao encontro do que neles se revelava. O presente, era a marca indelével do futuro.


dc

 


quarta-feira, 16 de outubro de 2024

História Perversa

Sinto-me agredido, por essa vozearia, na comunicação pública. Sei, que trazem as palavras, constroem frases, cruas, duras, ensanguentadas que exacerbam as emoções. A mente se desgoverna sem freio, vai em direcção a um lugar indescritível, talvez pelo terror do que se lhe apresenta, talvez pelo medo de se conscientizar, que afinal é realidade, não um pensamento, ideia ou sonho. Uma rede estruturada, de comandos subliminares, transmitindo, de fora para dentro, tenta influir, no que a mente elabora, para que ela por si só, vá ao encontro do caminho que lhe destinam. Sinto que ela tenta tocar o meu íntimo, e então me apetece perder a humanidade. Cortar definitivamente com essas gentes, que se me apresentam tão miseráveis, que vulgarizam a vida, tomam misseis ao pequeno-almoço, drones como aperitivos, arrotos ao almoço e no desenrolar da janta, bombas neutrónicas como sobremesa, nesse espaço de descomando da humanidade. No meio disso tudo, corpos inocentes caem na terra, tal qual adubo, satisfazendo estômagos milionários insaciáveis.
Quanta vergonha, conseguirei aguentar, para que se não solte o verbo, ou a fúria embraveça o gesto?


dc