quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Gestos e palavras



Na míngua da materialidade dos gestos, dos sons, do olhar, olhos nos olhos, dos cheiros e das formas, recorremos às palavras e estas em alguns casos excessivamente superlativas, em outros se perdem num relato incompleto dos sentimentos. As palavras e frases, mesmo que ricas de expressividade, apagam-se, ou podem ficar eternamente esperando, a sua leitura. Escrever e ler, conhecimento da língua, exigem ginástica mental, interpretação de pontos de vista, o que se pretende quando se escreve, resumindo uma forma intelectualizada de conhecimento e reconhecimento. Não que seja mau, mas traz demora ao sentir.

“Ao sair de casa deixou um papel escrito, despedindo-se, “até mais logo, meu amor”, colocado na mesa visível da sala. Teria preferido que ao sair tivesse-me acordado, e mesmo de olhos pouco abertos, saber-lhe-ia melhor, aquele beijo nos lábios, aquele abraço que traz o fresco da manhã, o cheiro e calor do corpo, mão em concha na face, numa carícia cheia de ternura. Isso sim, seria um registo mais profundo, preso à pele, marcando os sentidos para o correr das horas. Não foi sua a escolha, podia até parecer falta de reconhecimento, mas aquelas palavras escritas, não substituíam o sentimento de falta e um vazio inexplicável, que nem a riqueza das palavras superava. Talvez só a sua silhueta no contra luz da porta num aceno, fosse mais plena, pensou para si. Sempre dizem que “uma imagem vale por mil palavras”

As palavras serão talvez melhor registo de memórias interpretadas. Uma estória, uma herança de gestos que se imaginam, ou uma explicação de de sentimentos, mas tantas vezes perdem o significado fechando-se, em si próprias.

dc

"Se olharmos as coisas de perto, na melhor das hipóteses chegaremos à conclusão de que as palavras tentam dizer o que pensamos ou sentimos, mas há motivos para suspeitar que, por muito que procurem, não chegarão nunca a enunciar essa coisa estranha, rara e misteriosa que é um sentimento."


José Saramago

domingo, 11 de novembro de 2018

Pela manhã



…no encontro quase furtivo, de todos os dias num tempo reduzido, soltamos as palavras, e deixamos os pensamentos que dentro do peito se constroem. Curto o tempo, grandes os desejos e vontades expressos. É o amor em estado puro. Não platónico, porque a linguagem traz a vontade do corpo, Antes temporariamente adiado. Agora o amor imprevisto, que se descobriu no primeiro falar e se alimentou neste saber esperar.


dc

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Na palma da mão




Ela dissera: a sua outra “alma gémea” está numa fronteira longínqua que quase lhe poderia dizer a cidade e com algum tempo de espera lhe diria o país. Era a voz da cigana, ao ler-lhe a sina nas linhas da mão, que de surpresa aprisionara entre as dela. Cuidado continuava ela: será um intenso amor, quase alimento e só ar para viver. Se caminharem até lá será uma vida para sempre. Quererão estar juntos, sempre sem tréguas.
O preconceito propõe a dúvida na cabeça das pessoas. Quem acredita na voz da cigana? Deu-lhe a moeda e fugiu da sua presença, caminhou algum tempo pensando: Como pode alguém, dizer tal coisa e trazer a dúvida, à sua existência de todos os dias e alimentar sonhos. Não qualquer coisa, mas traçar o seu destino num amor com futuro. Na realidade, não era difícil para a cigana dizer o que as pessoas gostam de ouvir, sofrem, umas mais outras menos, da carência e incerteza, desse tal sentimento que chamam amor. Ela, afinal, dava a todos o que queriam ver preenchido, ali tão fácil, na palma da mão. Se o “destino” se cumpria, já não era seu problema, cada um desse a si próprio a oportunidade de acreditar ou não.

dc

sábado, 3 de novembro de 2018

Não só ao sábado





Vislumbram na neblina, imagens fantásticas, entre pensamentos e gestos.
Amanhecemos banhados de emoções e desejos incontidos. Procurámo-nos ansiosos, no beijo, nas mãos agitadas, nos corpos insanos que se querem. Vamos na torrente que nos toma. Cada caricia, um sussurro alongado no tempo. Cada beijo uma chama de fogo, cada suspiro um incentivo da carne esvaziando o cérebro. As emoções chegam à superfície, tomam os sentidos, dirigem as mãos na descoberta do corpo, dos desejos e na realização completa do amor. Despertos, fluem até a saciedade, em manobras ágeis que se entrelaçam e findam na explosão dos afagos.
Restam olhando o tecto, como se o céu fosse a cobertura e o leito o prado verde do campo. As mãos se entrelaçam, o ar que respiram tem a fragrância dos que amando se adentram para além da superfície da pele. As cabeças se movem, os lábios procuram docemente o prazer da serenidade. Olhos nos olhos, aguados lagos, onde ainda navegam a ternura e esperança e o desafio sem limites.
Assim começou o dia, de todos os dias, com que sustentam o que os une e alimenta a capacidade de resistir à invasão das coisas menores, que os possam afectar. Não só ao sábado.

dc

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Dia de Finados





Sim.
É o silêncio
Que o peito esmaga.

A neblina no espelho de água
Em horizonte indefinido
Há muito no tempo perdido

Restam, amor, tristeza e mágoa
Da memória de entes queridos
que em nós nunca se apaga.

dc