Sabia que ela era uma mulher, da
área das leis e muito responsável, que trabalhava imenso, sem perder o foco. Quase
diria obcecada, atitude essa, onde não sobejava tempo, para ter, o seu próprio
tempo. Esse seu modo de ser, levava-o a pensar, se não seria por ela temer, voltar
a envolver-se física e emocionalmente com alguém; uma espécie de fuga para a
frente, evitando confrontar-se, ou de libertar-se, dos espartilhos que a si
própria colocava. A ser assim, difícil seria encontrar o amor que tanto
ansiava, ou melhor, procurava alcançar. E seria bem possível, que o outro, nela interessado, se lamentasse: preferindo que fosse uma ladra habilidosa, sem
medo de ser presa, fazendo tudo, para o ter sempre perto dela. Atrevia-se a pensar,
se realmente, alguma vez, ela teria arriscado, a conhecer efectivamente alguém,
a sério. Temeria enganar-se na escolha, na expectativa, na figura de
preferência, como se na escolha do vinho, no vestido inadequado, do sutiã fora
de tempo, ou sem ele? Quantas vezes, teria ousado, usar a linguagem mais vulgar
na intimidade da cama, dando azo à imaginação, despida de pruridos balofos,
deixando o corpo surfar na onda do desejo, sem medo do que o outro pensa, deixar
que aconteça, sem perda de tempo, sem julgar o que ainda nem começou? Alguma
vez aconteceu o beijo espontâneo, a mão que acaricia, debaixo da mesa, quando
os olhos sorriem marotos? Alguma vez, andou pelas ruas, de mão enfiada no bolso
traseiro das calças dele e ele nas dela, rindo pelo prazer, da intimidade do
gesto, no aconchego de sentir os dedos na carne?
Sem erros, a realidade seria sensaborona. A fatídica certeza, traria a loucura,
seria ausente do prazer da aprendizagem, nos diferentes obstáculos no caminho
que se percorre, ou do gozo da concretização, ao alcançar objectivo traçado e o
sabor da sua conquista. Somos vítimas, de prisões intelectuais, do sistema ridículo,
que nos impõe as cadeias de comportamento social, que nos diz o que devemos, ou
não, fazer. Tememos o julgamento dos outros, deixamos de ser quem somos, para
sermos aquilo que os outros propõem que sejamos, mesmo quando nos apetece
correr pelas ruas à gargalhada, ou balançando os braços de mão dada, como se
pêndulos, brincando a embalar o amor que nos domina. Tantas são as vezes, que
nos apetece sentar no baloiço da nossa infância, sem receio da idade, ou vergonha, que
nos limite, e vogar naquele vai e vem que nos tira os pés do chão, para podermos
sonhar. E, porque não?
dc
segunda-feira, 22 de agosto de 2022
Além das aparências
terça-feira, 9 de agosto de 2022
Na praia a sós
Lado a lado de mão dada, vamos andando para o longe; vagueando, tacteando o chão de areia, que se afunda sobre os nossos pés. Vamos ao encontro de um espaço vazio, longe de outros olhares, que não aqueles que devotamos a nós próprios. Fugimos do rectângulo diminuto que nos sobeja, onde proliferam os guarda-sóis, os corpos esparramados, preenchendo o areal, como se não houvesse amanhã, e, da escuta cusca, ou da agudeza, rebarbativa, de algumas conversas pessoais, das quais teremos de ser ouvintes forçados. É a busca consciente, dum espaço, outro, que nos permita o silêncio, ou somente o som das nossas vozes. Queremos ficar libertos do espartilho das vestes e de acessórios desconfortáveis. Ali, nesse lugar de nenhures, onde a natureza é um delicioso lugar de estar, que nos liberta os sentidos, onde se pode gritar em voz alta o que cada um sente. Ali, os corpos com as costas tocando a toalha imensa da praia, expondo a nudez do corpo e da mente, sobre o sol escaldante e onde pudemos banhar o corpo na água do mar, como recém-nascidos. O tal lugar, onde os corpos não são vítimas de escrutínio estético, alheio, se podem beijar e tocar, ou até se permitirem a que o amor se faça, com a mesma fluidez, com que a água do mar banha o areal. Depois, perdida a noção temporal, será o fim de tarde, se arrastando, que nos dará a noção do regresso ao lugar de partida, acompanhando a retirada do sol, que vai repousando na linha do horizonte, para o descanso do dia.
dc
domingo, 7 de agosto de 2022
A dúvida
Naquele primeiro encontro, fora das convenções, não sabia, se fizeram amor, ou simplesmente sexo empenhado, saboroso, requintado. Fizeram-no, foi bom e pronto, para quê avaliar muito mais. Fizeram-no repetidamente ao longo daquele dia, como nos tempos posteriores, que estiveram juntos, sem limitações, descobrindo, apreciando cada bocadinho de si. Não seguiam o Kama Sutra, mas alimentavam as tempestades e repousavam na bonança. Conheciam os seus cheiros, no cio, ou fora dele, saboreavam cada interstício de pele, sem medir o tempo, sem amanhã. Jogavam bem naquele campo, sem domínio absoluto de nenhuma das partes. Era uma parte óptima dos dois. À partida ambos embarcaram na aventura da descoberta, empolgados, confiantes, sem muitas palavras, deixando as emoções dominarem, sem sentirmos ser preciso saber algo mais. Foi “amor (?) à primeira vista”. Se assim foi, nasceu cego, que nem intuíram sequer, possíveis in/compatibilidades, nem naqueles pequenos nadas que iam surgindo nas conversas que versavam temas fora do leito. Pareciam temer revelar-se, como se fazê-lo fosse uma disputa de razões, ou que teriam de pensar igual. Conquistar o presente, alimentando projectos com vista o futuro, parecia ser assustador. Ambos sabiam, que somente os “jogos de cama”, não seriam suficientes para alimentarem o que acontecia, que para durar e ser real, seria necessário “primeiro fazer a cama para nela se deitarem”. Poderiam até aceitar, que bastava o que tinham, necessário era assumi-lo. Esta era uma outra tarefa difícil de levar a bom porto, nenhum queria admitir ser somente sexo, porque temiam fosse mais que isso, fugiam de aceitar que teriam de mudar alguma coisa, para que a perenidade do que existia tivesse mais substrato e se tornasse duradouro. Partir deixaria dúvidas, ficar exigia compromisso, reconhecer que algo mais acontecera. Simultaneamente, num coro a duas vozes, surgiu a pergunta, e agora?
dc
terça-feira, 2 de agosto de 2022
Na busca da diferença
Queria apanhar o sol, deitando-se na linha do horizonte. Queria fixar os últimos instantes do dia com a sua cor quente e as alterações da sua forma, conforme se vai sumindo aos nossos olhos, como sempre faz, num esconde, esconde, entre o dia e a noite. Não fujo à regra, sinto o fascínio do comum dos mortais, perante este fenómeno, mas queria buscar a diferença, para que este momento fosse só meu, que a escolha tivesse o meu toque, o meu enquadramento, fosse o meu sol. Nesse procura de captar a melhor imagem, que já em outras alturas tentei obter, fui fazendo sucessivos disparos, quando de repente uma ave que desconheço o nome, talvez pressentido a minha motivação, resolveu ajudar, colocando-se no lugar certo, para equilibrar a composição e enriquecer o momento. Fico grato por tal ajuda, que me encheu o peito de alegria e vaidade pela sua parceria, que decidi publicar a imagem.
dc
domingo, 31 de julho de 2022
Passeio no areal
Passeio-me pelo areal, fujo
de mim, atordoando-me com o som do mar que se agita e se engrandece, perante os
meus olhos que o vão observando, temeroso da sua força que tudo derruba e do
seu fascínio, que nos coloca na vontade de nele entrar, derrubando ondas,
correndo o risco de nele ser retido. Fico-me pela tentação e bordejo o derramar
das ondas no areal, apagando as pegadas que vou deixando, anulando o rastro da
minha passagem, ausentando-me, como se desenhos a giz num quadro preto.
Vou colocando um pé a seguir ao outro, sem pensar que o faço. Eu estou caminhando
no silêncio interior. Não determino, nem distância, nem tempo para ali estar, somente
esmagando a areia com os pés, como acupuntura, para recuperação do corpo e da
mente.
Nem todos procuramos o mesmo. Essa é a riqueza da vida. Aqueles que eu observo,
quando passo, homem e mulher, não estão na mesma onda. Chegaram ao areal,
vestidos de traje completo, foram para perto do finalizar da onda molhar os pés,
sorrindo e olhando-se, como se procurassem baptismo para o seu nascer de
amantes, o mar premiou-os com o seu brilho.
dc
sexta-feira, 29 de julho de 2022
"Ver" com os dedos
Tocou a superfície fria, lisa, acetinada, sentia-lhe as formas arredondadas, o volume dos lábios, as reentrâncias do cabelo e dos olhos. Enquanto isso, a sua voz ia relatando, o que sentia na polpa dos dedos. O mármore branco, falava dum mundo com cores. A cada peça tocada, sentia-se-lhe a vibração na voz, tal era a forma intensa com que descrevia cada pormenor e o seu significado: que rosto tão suave! Que boca tão perfeita! Oh! Que rosto tão redondinho, é um menino!? Como é possível esculpir tal beleza? Rosa, invisual desde criança, agora já adulta, naquele momento, apreciava um busto de criança. A sua descrição pormenorizada e emocionada, era o retrato fiel do que eu via, seu acompanhante, que com mais alguns alunos do curso de pintura, voluntariamente nos dispuséramos para aquela visita guiada, para invisuais, no Museu do Escultor Teixeira Lopes. Foi um sábado memorável, uma das mais enriquecedoras experiências para nós, jovens, que queríamos aprender a arte de esculpir e pintar. Percebi aí, que para ser um artista, teria de possuir uma leitura e sensibilidade para além do visível. Aprendemos, que na ponta dos dedos, havia mais sensibilidade e percepção à flor da pele, do que nós de olhos abertos, sem a arte, de saber tocar. Se para ela, um sentido não existia, todos os outros estavam bem mais latentes e enriquecidos. Quase apetecia dizer, que deveríamos aprender de olhos fechados, antes de nos atrevermos a mais.
dc
domingo, 24 de julho de 2022
É bom não ignorar
Ignorar quem nos ignora, é
fazer prevalecer o respeito por nós próprios. É um caso para registar, quando
alguém passa por nós, neste rodízio da vida, com ar compenetrado, olhar
alongado na distância, quase roçando o nosso corpo, naquele ignorar “involuntário”.
É bom não ignorar quem nos ignora, ou tenta passar despercebido, mesmo quando
passa pela nossa frente e o resto do mundo estivesse para além das nossas
costas. Quem nos ignora, informa quanto à sua identidade e caracteriza a sua
tipologia como pessoa. Não deve passar em branco, àquele que é ignorado, a
conduta do outro. O ignorar desse outro, pode ser uma espécie de provocação, que
muitas vezes tem um efeito contrário. Aquele que em mim não repara, quer que eu
fique atento à sua visibilidade, quando sou invisível aos seus olhos. A
resposta ao seu ignorar, é nos fazermos notados, saudando, sorrindo,
enfrentando, questionar quem não quer ser questionado e queria fazer-nos
ignorados, depois, depois rodar, dando de costas, caminhando para um outro
lugar, onde o cheiro da falta de ética não tresande.
dc