Olhei-as atentamente, enquanto pensava nos milhares de quilómetros percorridos com elas, Não somente calçadas para enfeitarem os pés, ou para dizer que não estava descalço, mas calcorreando estradas, caminhos de terra, vielas, subindo e descendo montes e escadas, ou frequentando lugares diversos, de gentes diferentes, sem que alguma vez sentisse desconforto, ou as achasse menos adequadas ao momento.
Feitas de calfe, a famosa pele de vitela, Suaves ao tacto, quando calçadas funcionam como uma luva para os pés, e são perfeitamente adequadas às exigências de quem com elas caminha as sete partidas do mundo.
Estas minhas amigas teriam muitas estórias para contar, caso falassem, por cada vinco ou esmurradela que têm, por cada vez que foram engraxadas, por cada vez que atravessaram ribeiros, poças de água, ou lameiros, por cada vez que a lama se incrustou nos interstícios dos pontos que cosem a sola à sua pele, Todas elas múltiplas razões da sua existência na minha vida, onde o seu papel foi preponderante para não desistir das missões de que muitas vezes fora incumbido.
Sempre as adorei, Tinha um prazer enorme quando me sentava na beira da cama e as tirava, sem que sentisse o tal cheiro incomodativo, que por norma os pés exalam, depois de muitas horas ali enfiados em espaço tão exíguo e apertado, O acto de as descalçar e as colocar aos pés da cama funcionava como um ritual, no qual os meus pensamentos iam percorrendo, como se escrevessem um diário, todos os espaços percorridos e a forma agradável como que elas me protegiam e quão grato lhes estava.
Nunca pensei ter tanto a dizer sobre as minhas queridas botas, mas isto é somente a forma de glorificar a sua existência, a sua qualidade e o meu agradecimento aos homens que ainda as vão produzindo com o mesmo amor com que as a calço.
DC
PS.Não eram propriamente estas botas que a imagem
revela, mas umas outras compradas no meio de uma longa viagem, onde atravessei
vários países, e que só as deixei quando estavam de tal forma intratáveis que já
não se podiam usar