domingo, 10 de março de 2019

Uma outra violência




A areia incrustou-se na pele reformulando a superfície, como poros sobre poros. Já não importava, ele tomara meu corpo no escaldante areal, do mesmo modo que de seguida me abandonara, frio, violento, como se eu não fosse gente. Cumpria a tradicional brutalidade de tempos idos, em que as mulheres não tinham direitos a não ser o de servir o macho. Estávamos em pleno século XX, mas ele agiu possuindo-me com a força do "direito ancestral”.
Eu caminhava com as pernas tremendo e arrastando os pés no areal. A dor imensa não estava no corpo, mas na alma, tal era vergonha que sentia, por um dia ter aceitado aquele homem para parceiro de uma vida. Não se tratara de um acto de violência doméstica comum, do punho fechado, nem do sangue derramado, mas da posse sem consentimento do meu corpo. Sentia-me suja do seu cheiro, das suas manápulas, dos seus beijos sebentos, da sua força me penetrando.
Sentia-me desfalecer e pensava, naquilo que as pessoas diziam, no dia a dia, “a violência não leva a lugar algum”, então como poderia responder à ignomínia que tinha sofrido, naquela tarde domingueira em que seria suposto conversar para resolver desentendimentos e acabei sendo violada, era assim que eu me sentia. Fora a resposta de força perante o meu desentendimento sobre como víamos a nossa vida em comum, e a resposta ao meu desprazer de o sentir próximo de mim.
Um dia uma amiga dissera-me que o companheiro, quando ela se queixava de dores, lhe dizia “fazemos amor que isso passa”. Teoria de macho vulgar, que não entende que o amor tem sexo e deve ser bom, mas tem de ser partilhado com o mesmo querer e prazer de ambas as partes.
Nem sempre a violência doméstica é de um só sentido, mas o sentido mais comum é aquele a onde a mulher é usada para capricho de gosto alheio. Tu sabes do que falo porque és mulher, ele sabe do que eu falo, porque mesmo atrás das grades, nada seria suficiente para apagar os riscos profundos que me marcam por dentro para todo o sempre. A luta que hoje desenvolvo será sempre efémera, se me ficar pelo pensamento de que nunca voltarei à minha inocência e crença no ser humano, terá de ser antes um registo eterno, que servirá de suporte ao meu esforço, aliado ao de muitos outros homens e mulheres, para trazer a justiça e igualdade de direitos.


dc

Nota:Não foi publicado no Dia da Mulher, pois penso que esse dia, mais do que nunca deve ser de celebração e e conquista de coisas boas e não de coisas tristes.


sábado, 9 de março de 2019

Estória de Amor




Cada um, no seu sítio, agitando-se, indecisos no começar. Um vendo de cima outro observando debaixo para cima, percorrem com passinhos curtos rolando na sua linguagem. Ao fim de alguns momentos, com a confiança com que a natureza os serviu o de cima desloca-se lançando a asa agitando tudo em volta. Sem perder tempo se abeira, e provoca e sem mais aquelas lhe prega um beijo, encostam as cabeças e se vão passarinhando, até ficarem bem juntos olhando e observando o espaço envolvente até retomarem os beijos e o saltitar alegre dos apaixonados. Não era o Dia dos Namorados, mas que pareciam um par de namorados, ai isso pareciam.

dc

domingo, 3 de março de 2019

Esboço dum sonho




Esboçou vezes sem conta, procurando encontrar o espaço, a proporção ideal e as soluções, faltava encontrar o lugar onde construir e o dinheiro para realizar. Teria de ser um qualquer lugar com árvores e junto da água, de preferência a do mar, mas poderia ser um rio, um lago uma barragem, um qualquer espelho de água que lhe permitisse pousar os olhos, sempre que se sentisse cansado dos dias. Ele tinha em mente um sítio especial que visitava frequentemente e que correspondia à maioria das suas premissas. O sonho ele tinha e a ideia base para construir a casa, o lugar poderia ser, mesmo aquele que tanto visitava. O único obstáculo era a falta de condições financeiras para realizar o seu objectivo.
Muita gente diz, para “pensar positivo”, que “tem de fazer isto e aquilo”, para “se obter é preciso trabalhar, esforçar-se”, “nada é de graça” e um sem fim de chavões, mas ele na realidade só apostava no euromilhões, essa sorte tardia, que nunca chega, porque não via “lura onde saísse coelho”, toda a sua vida fora de trabalho e estudo. Como essa gente que tantos conselhos dão, também ele pensava, que estava a um bocadinho assim, pequenino, assim muito pequeno de conseguir, e pondo os dedos, polegar e indicador, a meio centímetro de distância, expressando a dimensão. Afinal era só dinheiro e o dinheiro não dá felicidade, não é? Pois é, esse vil metal que não dá felicidade, que era o necessário para dar o empurrão que precisava para resolver o sonho.
Reflectindo, sobre o assunto, especulando e alargando o leque dos pensamentos, dizia de si para si: por que razão o mundo, tendo evoluído, desta forma actual, com uma natureza rica de diversidade, com seres humanos de diferentes cores e raças, com uma inteligência que se julga diferente e superior, a todos os outros seres que habitam à superfície da terra, nos deixa a léguas de realizar o qualquer ser humano deveria ter por direito? Alguém que cria as cidades, inventa e projecta, desenvolve e aplica os seus conhecimentos científicos, e que se encontra limitado a uma mentalidade economicista que lhe impede de ser livre e poder ver e visitar diferentes lugares do mundo, de ter uma casa, e de poder, se quisesse realizar os sonhos, que não colidem com os interesses de outros? Uma sociedade com diferenças entre seres “humanos” tão acentuadas. Afinal o que pretendem esses que têm milhões em contas de bancos, que exploram seres humanos, para terem dinheiro e luxos, que alguns deles nem apreciam? Não são eles que proclamam que o dinheiro não traz felicidade? Pois pimenta no … dos outros é refresco, como tal todos temos o garrote que nos limita a ser escravos em qualquer momento da história da humanidade. Somos a democracia de direito zero, a favor do direito em numerário de uns poucos.

dc

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Um outro tecer




Sorris, e com essa luz que irradias dos teus olhos, fazes mover o meu coração como um tear, que tece com fios de amor o tecido da minha existência.

dc

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Porta Fechada




Não aprecio a noite em si, como momento de viver, mas como um espaço em que só a mente faz ruído, nesse agitar das correntes que atravessam o cérebro, na procura das perguntas, quase sempre sem resposta, ao que queremos saber.
De repente não somos ninguém ficamos esquecidos, tudo é mais importante do que nós. Perdemos a boleia do coração e ficamos estacionados no mar morto da ignorância. Ficamos como figuras desenhadas a lápis sensaborão que se apagam facilmente com a borracha do tempo. Em gíria de futebol, passamos de bestiais a bestas, no tempo ínfimo dum sopro cavernoso da mente perversa que tudo vê errado. A dedicação se transforma, pondo o eu em primeiro lugar, abrindo as portas ao julgamento, do que se desconhece.
E penso, talvez tenhas razão, em ficar nesse mundinho apertado
, onde se perde a voz e não é necessário arriscar, preferes a estabilidade da segurança material. Os anos correrão na sua normalidade do mesmo modo que as rugas mapearão o teu rosto; enquanto isso os cabelos ficarão cinzentos, os olhos pálidos e as formas do corpo terão tendência para se indefinir entre a magreza, ou a gordura, extrema. Será um congelamento precoce numa vida esmorecida, sem o gozo emocional de viver. Entretanto, quando uma porta se fecha outra se abre, procurarei encontrar um outro alguém que arrisque, valorize e aprecie viver o presente carregado de emoções. Não estarei cá tempo suficiente, nem me perderei para saber se a tua opção foi a melhor.

dc