terça-feira, 9 de abril de 2019

Cidade para que te quero


Fico do alto, bem longe dos seus cheiros, naquele vão enorme com uma espécie de gradeamento que me protege e esconde. Vou observando tudo aquilo que lá longe se move, veículos, pessoas e animais, como um desenho animado de uma cidade de brincar que eu posso fazer andar, ou parar, carregando no botão que a mantém ligada à corrente. 
Isolo-me da cidade, crio paredes invisíveis entre mim e os outros, entre mim e toda a sua actividade, que já não é a minha cidade, mas a daqueles que a visitam. São às dezenas com mochilas às costas, arrastando malas para o primeiro alojamento, ou, com garrafas de água e um saco plástico com fruta, circulando quase com frenesim como moscas. As esplanadas enchem-se de pessoas a falarem línguas estranhas, a comeram, acepipes que não são tradicionais, a beberem cerveja, ou vinho branco gelado que às vezes esconde a má qualidade, bebem vinho do porto, porque é doce sem saberem exactamente o que estão a beber e tomam muito café, porque além de ser acessível, tem a qualidade difícil de encontrar nos seus países. É gente que visita uma cidade em que os autóctones foram enviados para dormitórios nos seus limites, para que eles os “estranjas” possam encher a cidade que visitam. A cidade tornou-se uma grande gaiola artificial onde os operadores de turismo enriquecem, os bancos fazem câmbios e as câmaras e governo se aproveitam. Os verdadeiros cidadãos são as marionetas que divertem e compõem o cenário. Já não é uma cidade, habitada com as suas idiossincrasias, é uma cidade com poucos moradores e muitos trabalhadores sazonais. Quem ao sábado aproveitava, para ir à cidade fazer compras estratégicas, tendo estacionamento gratuito, agora tem de o pagar. Um arquitecto famoso em Portugal dizia, que a cidade era das pessoas que nela habitam, hoje a cidade é desse público flutuante que dá ideia de que é habitada. Vários foram os eleitos que prometeram fazer com que a cidade fosse dos que nela habitam, até prometendo voltar trazer pessoas a morarem nela. Tudo ficou no plano eleitoral, rapidamente obedeceram ao critério dos chamados interesses económicos. As recuperações dos edifícios fazem-se pensando, no hotel, no hostal(?), no boteco, (já não se diz tasco). A Avenida dos Aliados já se começa a chamar a Avenida dos Hotéis, não tarda que até comecem a aparecer ruas com nomes como Angela Merkel, May, Napoleão etc. etc. E em vez de Pensão Montalegre, apareça Hostal Happy Mountain. Os cidadãos, os tugas, passam a pagar os preços incomportáveis do turismo, em tudo que é sítio ao ponto de dentro do seu país ao pernoitarem numa das cidades que não a sua, paguem uma taxa. Afinal a cidade é de quem? O país é de quem? Quem elege estes todos senhores que comandam os nossos destinos como portugueses? Há quem diga, “é assim em todos os lados da Europa”, e eu pergunto, afinal para que serviu a CEE, para sermos cada vez menos nós e sermos cada vez mais deles, os que mandam, os donos de tudo, os senhores do poder e do dinheiro, que eleitos pela maioria do povo, só se preocupam com uma minoria, justificando com o, bem maior?

dc

quarta-feira, 3 de abril de 2019

É a vida



Era tão fácil amar-te, se eu lia para além dos teus olhos, e me aproveitava dos trejeitos da tua boca, dela bebendo os beijos e o sabor dos teus lábios.
Era tão fácil amar-te, se sentia a seda do teu cabelo no passear das minhas mãos, enquanto ouvia a tua voz quente seduzindo-me, com as palavras que ias pronunciando entre cada suspiro.
Era tão fácil amar-te, se conhecia todos os lugares do teu corpo e os seus desejos, na resposta ao meu amor.
Era tão fácil, comunicar entre nós. A inteligência é elemento fulcral da cultura, cada uma quase antecipando o que pensava o outro, ou percebendo a motivação do outro.
Era tão fácil limar as arestas dos desentendimentos, com a força do que era mais importante para nós.
Era tão difícil deixar-te a cada dia que tinha de partir, pela imposição dos outros, porque diziam, “é a vida”.
Era sempre difícil porque ainda trazia o rastro da noite e a imagem da água correndo pelo corpo, no chuveiro matinal, que não eliminava, o cheiro e o calor do teu corpo adormecido encontra o meu. E de seguida o café da manhã entre caricias e o beijo da despedida.
Era sempre difícil, porque a espera incomodava, perante a urgência de estarmos perto.
Nesta contradição entre o fácil e o difícil, se sedimentava a justeza do que possuíamos, a necessidade de o conservarmos, a urgência de o vivermos cada dia como se não existisse outro a seguir.
Hoje alguns, anos depois da partida definitiva, já não dói. Quando algo como o que tivemos é tão pleno, deixa-nos muito tempo, agarrados a memórias que nos fazem sorrir e sem a urgência de procurar um outro substituto de amor. No entanto, é inevitável que venha a acontecer, e nessa altura, gostaria que tivesse muitas semelhanças, mas muito mais, avaliar o quanto ainda existe de bom, que desconhecemos e podemos partilhar.

dc

domingo, 31 de março de 2019

A mulher que ouvia as gaivotas


Adorava aquele movimento das pessoas, no seu vai e vem, uns correndo outros caminhado, as bicicletas circulando rente a eles, alguns namorando, a algaraviada do “turistame” e as crianças nos baloiços brincando. Ela não os ouvia propriamente, ela sentia-os como música de fundo melhorando a sua audição especial para com os outros seres.
Olhavam-na, e se calhar pensavam, que escolhera estar ali na margem da foz do rio, para poder ler em sossego. Na realidade, ela tinha o livro aberto para que as pessoas não se apercebessem que ela estava ali a falar com as gaivotas, as pombas e com os patos, enquanto estava atenta ao que o rio lhe dizia, naquele seu marulhar ao longo das margens. Ao levantar os olhos do livro, pareceria estar a descansar os olhos da leitura, mas na realidade era uma pausa simulada para que não reparassem nela de forma estranha. Enquanto ouvia dentro de si própria, aquela gaivota que está gritando às outras dizendo-lhes que há peixe miúdo ali entre as rochas, as pombas aborrecidas a reclamarem que elas sãos umas chatas, que lhes roubam o pão e o milho que algumas crianças trazem para elas, os patos estão sempre na deles, adormecem, passeiam e não se incomodam. Ah, ainda não falei dos peixes, que ali no rio se passeiam, rindo à gargalhada pelas partidas que pregam aos pescadores, passeando-se, entre os anzóis, roubando-lhes o isco, e depois em cardume empurram a bota velha para o anzol. Eles são os que mais me divertem, quando aqui estou sentada, eles fazem-me sorrir sozinha parecendo uma doida.
Neste domingo, embora na véspera do dia de enganos, não estou aqui, mais uma vez, um par de horas por engano, mas “enganando” e colhendo benefícios, repetindo a dose desta droga natural que apura a minha qualidade de vida e a imunidade para com as doenças da chamada modernidade e civilização.

dc



sábado, 30 de março de 2019

Incrível amor


Sentado, como sempre tomando a minha meia de leite e comendo a regueifa com manteiga, ia olhando para as páginas do livro à minha frente. A certo momento levantei os olhos e fiquei fascinado com o que se passava numa outra mesa, no lado oposto da sala.
O aspecto era de dois octogenários, vestidos de modo simples, de rosto marcado pelo tempo, mas com um aspecto suave e olhares carregados de ternura, que davam as mãos, sobre a mesa. Ela segura-lha as mãos e ia dizendo algo não audível e ele respondia sorrindo. Por vezes ela soltava uma das mãos e fazia-lhe uma carícia na face, como se de uma pena se tratasse. Em outras dava-lhe pequenas palmadinhas na mão, ou até lhe agarrava uma das mãos e a outra por baixo do queixo e observando a sala, como se fizesse uma paragem algures no seu interior. Tal impressionou-me, que chamei uma das empregadas já habitual e lhe perguntei, se tinha reparado na beleza daquele quadro que surgia aos nossos olhos. Ela brincou do género “está a ver o amor”, era isso que também queria? Uma outra empregada se abeirou e esclareceu: “Aquela senhora tem Alzheimer em último grau, a única coisa que ela reconhece é presença do seu marido e o caminho para casa”. Perante a minha admiração ela acrescentou; Ele pede-nos sempre que se afasta para fumar ou ir à casa de banho que tomemos conta dela, porque ela não se lembra se estava com ele e vai logo para casa. E acrescentou “ele adora aquela senhora e estão sempre assim, ele é super carinhoso”. Tocou-me fundo. Pensei que aquela doença tem particularidades que desconhecia, até sei que as pessoas vão perdendo as memórias e referências, não sabia é que o amor e o contacto entre si, podiam ser ainda uma forma de a manter ligada ao mundo. Possivelmente, como quando as pessoas se embriagam, o que vem à superfície, na maioria dos casos, é aquilo que as pessoas são na realidade. Naquele casal, possivelmente a doença ia minando o cérebro daquela senhora, mas certamente a última coisa que ela perderia seria o seu amor. Muito estará por saber afinal, sobre o que está para além dos efeitos da doença e que tipo de realidade vivem as pessoas que se vão morrendo neste percurso, percurso este, mais doloroso para os outros que presenciam do que propriamente para o doente.
Uma coisa me tocou, falavam com as mãos, tocavam-se com os olhos, estavam como parados num tempo e espaço, um e outro no seu papel, mas ambos humanos. Hoje muitas vezes acontece um Alzheimer tecnológico, onde dois se perdem não no caminho das memórias, mas do registo da sua humanidade, como seres que não se comunicam, por gestos ou palavras, palavras e ternura.


dc