sábado, 4 de abril de 2020

Entre os raios de sol, gozando as sombras



Calmamente, vestiu-se e saiu para colocar o lixo no contentor. Cumpriu as regras. Levava um pequeno frasco com gel de álcool, e "dodots" no bolso, para o que fosse necessário. Manteve a distância entre os poucos que se cruzavam consigo, não contactou nem foi contactado, passou entre os raios de sol, gozando as sombras. Como sempre trazia consigo uma capa com um bloco de notas e um livro, o de hoje, Se Esta Rua Falasse. Não parou no contentor mais do que o suficiente, fez-se distraído de si próprio e continuou, durante cem metros, na circunvalação, depois virou para a rua, que sabia deserta, quando a escola está fechada. Se aquela rua falasse, lembraria quanta vez por ali passou, procurando fugir da agitação dos dias e encontrar um pequeno espaço, onde a ambiguidade entre a cidade e o campo existia. Ele precisava de encontrar-se, abraçar a natureza com os olhos e os seus cheiros e não se perder, no medo, ou no pânico, de todos os dias, sugerido em imagens e textos nos média. Precisava do ruído silencioso da natureza. A dado momento, encontrou um muro de pedra, baixo o suficiente para se sentar à sombra de uma árvore e poder ler o seu livro. Tinha de parar um pouco os ruídos das mortes, da pandemia, do que fazem as elites financeiras, as vozes dos governos e acima de tudo mitigar, para si, a dor daqueles, que diariamente, de forma dura procuram cumprir solidariamente e tomar decisões para que todos outros fossem sobrevivendo.
Abriu o livro e lentamente enquanto dava um último olhar no ambiente que o rodeava. Entrou finalmente na leitura do livro. O romance não era de todo alegre, falava de amor, mas também de racismo e da injustiça social a que a sua negritude os condenava. Ele, preso por um crime que não cometera, ela, grávida, ambos esperando, ele a libertação, ela que a criança nascesse. A sua estória dava alento para acreditar que o amar se sobrepunha a todas as outras coisas. De vez em quando, levantava os olhos para uma pausa, olhava em volta, e recriava-se com o ruído do riacho, dos pássaros e da brisa que corria. Enquanto isso o tempo correu.

Não lhe apetecia interromper a leitura. Até que, do nada, surgiu um carro da polícia, que parou perto de si, ao princípio pensou que pudesse ser por sua causa, mas não, foi para interpelar um motociclista que ia em sentido contrário. Nessa altura apercebeu-se do tempo decorrido, era o momento de regressar, antes que a via principal começasse a ter movimento demais. Mais uma vez, dando passos controlados, observando quem vinha, fugindo de contactos, como um detective, que não quer ser descoberto.
Furei a quarentena, pensou, mas não coloquei ninguém em perigo. Só tinha acontecido,
porque na sua mente se confundiam inverno e primavera, a esperança se resumia ao findar dos dias deste  seu entardecer da vida e perante este presente sobreviver à maldade de alguns homens, que destroem o nosso mundinho, plantando um vírus mortal.
A atitude assumida não foi a mais correcta, mas entre isso e o risco de ficar louco, ao fim destes dias todos, fechado em casa, arriscou. Agora com as pilhas carregadas, é como se tivesse tomado a primeira parte de uma vacina e pronto para nova etapa de sacrifício.

dc


Entre os raios de sol, gozando as sombras (imagens)

"Precisava do ruído silencioso da natureza. A dado momento, encontrou um muro de pedra, baixo o suficiente para se sentar à sombra de uma árvore e poder ler o seu livro" dc

sábado, 14 de março de 2020

VH+1- we love the…

No silêncio da casa, a música ressoa reflectida pelas poucas paredes ausentes de livros. A sua sonoridade adentra pelos pensamentos e traz emoções várias, transporta-me para a carruagem dum comboio de sons, numa viagem de um único destino sem paragens intermédias. Sinto que os olhos se fecham, as imagens desenham-se na mente de uma forma quase real. Por que não me deixar ir, como se de meditação se tratasse. O pensamento, viaja e cria cenas sucessivas, com gentes e lugares diferentes, numa vertigem de acontecimentos que parecem encaminhar-nos para respostas que de algum modo quero saber. Os acontecimentos e as frases visuais parecem querer mostrar algo imensurável, a tensão interna aumenta, mas algures no cérebro, como se existisse uma chave de código, condiciona o acesso, e estabelece o limite até onde ir. Surge a necessidade de abrir os olhos e rapidamente encontrar um chão, como uma espécie de apneia, ou um aviso de que estamos a passar os limites do que devemos conhecer, sobre nós, ou do mundo que nos envolve. Uma caixa de Pandora, que aberta irá trazer-nos para um mundo que nos modificará a existência.
Olhos bem abertos, uma sensação indescritível, assenhora-se do corpo, com a estranheza e um desconforto que me divide entre o que deveria ter descoberto e um medo fundo das consequências caso isso tivesse acontecido.
Viver o ser humano que somos ainda está longe do nosso conhecimento. Não falo, daquilo que alguns chamam de vidas passadas, mas sim da capacidade de armazenamento de conhecimento acumulado, que dentro de nós reside, e, parece impedido de surgir à luz do dia, temendo pela nossa sanidade, ou onde poderíamos chegar com tal conhecimento.


dc

quinta-feira, 12 de março de 2020

Aqui e só


Aqui só, sentada, na penumbra o silêncio e eu formamos o enquadramento necessário, para dar azo a imaginação, analisando e construindo projectos. Não existe calor nem frio, nem chuva ou sol, nem a brisa se sente, mesmo com as coxas desnudas. A percepção do corpo é mais nítida, a urgência de ti é maior e o diálogo abstracto vai procurando perguntas e respostas, sugestões e soluções, que mitiguem as razões da ausência, a distância que existe, o abraço que não chega e o cheiro das flores não surge anunciando a Primavera possível. O pensamento vai mais longe, do que este lugar onde me encontro, e vai-me mantendo no fio da navalha entre o estar ou partir.

dc

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Para além das palavras

Acordara para um rio de sentimentos, dos quais as lágrimas falavam. A sensibilidade era como humidade entrando nos ossos. Deixava marcas e um frio adentrando… enquanto as lágrimas corriam… como um estilete na ponta dos dedos, desenhando sobre a pele do rosto todas as memórias, para além das palavras.
dc


domingo, 23 de fevereiro de 2020

A memória do beijo acompanhava-o


Sentou-se no mesmo banco, onde sempre se sentavam, vendo as margens do mesmo rio. Agora só havia uma única sombra, marcando o chão cinzento. A cor ambiente, no entanto, era dourada, tão dourada como dourados eram os sonhos que naquele banco, foram tecidos, quase sem palavras. As pessoas circulavam de forma prazerosa, aproveitando a nesga de sol e calor que neste final de inverno começava a abrir as portas à primavera. Embora fosse Carnaval, viam-se grupos, talvez famílias, conversando e caminhando; homens e mulheres correndo ou andando de bicicleta, outros com os cães à trela. Havia pessoas sentadas em bancos conversando, ou simplesmente deixando correr os olhos pelo rebuliço e beleza que a paisagem lhe trazia. Ali estava ele, como era seu hábito. Os pensamentos vagueavam sobre o significado da frase que lera: guarde o melhor beijo da sua amada, na sua memória, para a ele recorrer para lhe adoçar e tornar mais fácil superar a angústia e a saudade. O sol ia caindo e a sua luz reflectia-se na água. Levantou-se, seguiu pela margem, caminhando em direcção ao pôr do sol, captando as sombras de outros, os sorrisos alheios, o contra luz nas árvores, o desenho dos barcos parados, balouçando nas águas. Havia um ruído de fundo e uma brisa mansa, que lhe trouxe um sorriso aos lábios. A memória do beijo acompanhava-o.

dc

sábado, 15 de fevereiro de 2020

Nem tudo são rosas

De repente a dor inesperada que rói, que mói e destrói toda a nossa integridade tira o discernimento, que nos rebaixa a condição de humano e nos transforma num trapo. É uma dor que galga o nosso corpo rompendo, nos interstícios da carne, comendo cada segundo de vida, diminuindo os amanhãs possíveis. Ainda ontem o sorriso, se abria na face, os olhos brilhavam de amor e alegria e pelas ruas descia e subia, saltitando nos passeios como quem baila num palco do circo. Agora aquela dor excruciante surgia, lembrando, que a felicidade é tão efémera. As férias recentes pareciam ter acontecido há dezenas de anos, a alegria, o calor do sol, a maresia, eram coisas trazidas pela memória. A doença não tinha cura, promíscua, invadia tudo sem dar cavaco, usava o seu corpo como armazém de especiarias, onde se deliciava, no cheiro da dor, do sangue sorvia, na vida que roubava. Na cabeça, a peruca era uma espécie de esconde, esconde, de um tratamento sem resposta, uma identificação, de alguém que ainda tentava lutar um pouco mais, mesmo no auge da incerteza. Sabe-se que quando ela ataca, a notícia de existir é uma violência, é uma tortura em que não somos obrigados a denunciar, mas a sentir.
Agora não adianta olhar para trás pensando no tempo perdido, nas ambições desmedidas, a luta pelo ter, que não se conseguiu, o stresse permanente do trabalho, do carinho que não se deu ao filho, à mãe, aos amigos, enfim ter vivido. Tudo relembra a presença que não fomos. Tudo se torna tarde de mais e as dores relembram a cada segundo, nos intervalos de calmaria em que a morfina permite o descanso do corpo, que temos de viver cada segundo, cada hora, cada dia, como a última oportunidade de ainda pudermos sorrir. Transformámo-nos num paliativo, que estorva a uns, causa a dor a outros, até que para todos, o alívio é que acabe depressa, para que termine a tortura, mesmo quando o amor é imenso. Isto não significa, que não existam muitos que batalham, enfrentam, como nunca fizeram na sua vida. Alguns vencendo a doença, outros conseguindo num curto espaço de tempo, dar tudo o que têm, para que as lembranças fiquem nos outros pelo melhor bocado que deram de si. Tudo isto vivido com intensidade, com problemas psicológicos, económicos e familiares à mistura, que torna a tarefa, daquilo que chamam esperança de vida, nestas circunstâncias, parecer uma blasfémia. Somos cada vez mais um corpo sem controlo possível, vivendo a imprevisibilidade do que lhe acontece, onde a idade não conta, nem a classe social.

dc