quarta-feira, 23 de junho de 2021

Ninguém sabia...

 


.... quem era ela, nem ela sabia que ele a queria a ela, nem mesmo ele sabia muito bem, porquê ela. Ele queria dela, as mãos no seu rosto, os seus olhos dentro dos seus, as carícias das mãos dela, os beijos dela, todos seus. Ela existia em alguém à sua espera, como ele à espera dela, para se encontrarem nas circunstâncias de cada um, nas exigências em comum, no dois em um, ultrapassando obstáculos, quebrando arestas, passando nas mais estreitas frestas, neste nosso mundo diverso. Todos os dias ele procurava, o seu amor quase perfeito, adentrando olhos nos olhos, absorvendo o perfume do ar, observando o vestir e o jeito de andar no cruzar das ruas, no limiar dos passeios, entre o ruído da multidão, entre as sombras na escuridão. Acontecia que na rua, ao nela circular, por vezes, era tal a intensidade do seu pensar, que se surpreendia de não a encontrar e a poder abraçar. Nunca foram cachorros perdidos nas ruas, correndo a mitigar o cio, nem necessitados de edital colado ou agrafado em sítios variados, sabia que mais dia menos dia iria tropeçar, naquilo que os aproximaria. Sem recorrer aos mecanismos da modernidade, acreditou sempre que aquele sentimento tão profundo, dentro de si, teria de sair para o acontecer, sem procura ou anúncio a colocar. Talvez um sorriso, um acontecimento banal, fosse a porta para tudo se iniciar, e depois, muito mais a conversar, tocar e aprofundar, num melhor interpretar onde cada um queria chegar.

dc

Para trazeres seja o que for para a tua vida, imagina que já lá está
Richard Bach – Pontes Para Eternidade

  

segunda-feira, 21 de junho de 2021

Na encruzilhada....


.... perversa da sua existência, os sinais se repetem e o medo da frustração, levanta barreiras e cria um impasse, na já difícil tomada de decisões. É a tal estória; queremos e não podemos, ou podemos e não queremos, sempre encontramos ou inventamos obstáculos para manter o nosso individualismo e não abrir as portas do que somos. A vontade de começar algo de novo e diferente é intensa, mas logo se esmorece, pela preguiça mental e comodismo individual, que se recusa a aceitar, que nem juntos os pauzinhos, são suficientes para construir um lugar para que a serenidade se evidencie e valha a pena acontecer. Na realidade nem repara que a imagem do seu reflexo, é vazia e incolor, e tira o brilho das coisas, que dentro de si elaboradas, pretendiam melhor destino. As desculpas são muitas e a oportunidade deixa de ser, afastam-se as perspectivas e antes de tudo começar, já findou. Esquece, que o que se passa na sua vida, é o resultado das suas escolhas e de acreditar, ou não, na sua própria capacidade de atrair e ajudar a que as coisas boas aconteçam e se realizem. E assim, é como um sonho que não se realiza ficando na beirada da consciência.

dc

 


quinta-feira, 10 de junho de 2021

Esperar é ganhar(?) tempo



Encurtam-se-lhe as palavras, não fluem, travam pela falta de ligação. O vocabulário, é insuficiente, para efabular e transformar o texto em algo criativo que valha a pena ler. Tem vezes, que o discurso parece pronto para as falas, mas algo estranho, faz-lhe esquecer a ligação e o sentido. A voz some-se quando devia expressar-se, a escrita é ilegível, uma afasia doentia, troca os sentidos. Talvez o temor de ao escrever se desnudar perante os outros, revelando a personagem real, que é a sua “cara” ou a forma como percebe o mundo em volta, fora dos interesses materiais. Precisa de manter alguma da sua intimidade, emocional e fugir dos padrões comuns dos tempos modernos e digitais que tudo se diz, onde tudo se revela, tudo faz a notícia acontecer. Não fazer uma “selfie“ escrita, evitando o bullying mundano. Reservar-se ao silêncio, guardar a fortaleza que é o seu espaço de estar. Esperar é uma forma artificial de ganhar tempo para que a esperança se realize.

 

dc


sábado, 29 de maio de 2021

Uma estória de silêncio

Quando se conheceram, já as rugas mapeavam o seu rosto e a maquilhagem era insuficiente para o esconder. As coxas já começavam a ficar roliças e pesadas, contrastando com o peito débil encimando o corpo. Coisa pouca, perante o seu sorriso atrevido, o brilho dos olhos, cor de mar, o veludo da sua voz e aquele perfume do seu corpo. “Pode-se dar tudo a uma mulher, menos a idade”. Tudo nela ultrapassava o tempo, trazendo para o presente a vivência duma navegação à vista em mar ondulante de delícias, e sonhos de voos errantes, entre nuvens, sem destino. Na realidade parecia uma flor que se não deixava morrer pelo estio, ou qualquer outra estação. Aparentemente frágil, tinha expressões, físicas e faladas, de segurança e firmeza na realização dos seus desejos e vontades. Com inteligência, verdade seja dita, usava o sorriso e a voz quente, encaminhando as coisas para satisfação das suas vontades. Tinha um discurso reduzido, pouca capacidade de partilhar intimidades, de dividir razões, ou conversar sobre hipóteses nunca antes, por si, elaboradas. A aventura nela só tinha um caminho, a descoberta do amor que queria. Como toda a rosa tem espinhos, ela não era fácil, tinha de ser seduzida todos os dias. A sua rebeldia, provocava insegurança e dúvida, assim mantinha o seu amado, sempre na expectativa de que, um dia, tudo poderia dar certo. Era confuso, para os de fora, perceber como se apaixonaram e evidenciaram momentos tão ricos de emoção, durante longo tempo. Na verdade, durou o tempo necessário da realização total do puzzle, as peças, desiguais, se encaixaram na reentrância, ou saliência de uma e outras, desenhando a imagem final. O amar, acontece, sem haver uma fórmula para dar certo, ou que explique que ambos se completam pela semelhança, ou pela diferença. É bem provável, tenha sido a procura de encaixar as diferenças, a motivação para se manterem, mesmo quando a distância ia provocando estragos.

De repente o silêncio, o orgulho sobrepôs-se, travando a iniciativa da descoberta do seu significado. Faltou maturidade para o aceitar e incapacidade para avaliar e interpretar a importância que ali assumia. Esperar, sem perceber a mensagem subliminar, é matar o que ainda estava vivo e, assim, possível fecho de um ciclo. Sendo o silêncio a sua praia, com ele se encontrava e reencontrava, sabia também que era melhor que o vazio, o silêncio era reflexão, espera, acção sem palavras, ou gestos, era um intervalo de preparação para o acontecer. Não era o vazio, era só ausência, o vazio seria mais, o nada, a inexistência de si próprio, as emoções no limbo. Há muito aprendera que tudo tem um princípio e um fim; no início tudo se diz e se faz, tudo alimenta o prazer da descoberta, para que o romance se escreva, sem falas perdidas. O fim traz a dor e alguém se pode machucar, isso torna as coisas difíceis. Nesse momento, faltam-nos as palavras para expressar o que sentimos, perde-se o discurso, as palavras, não se tornam falas e morrem no pensamento. Fica impossível avaliar os factos da rotura, porque a dor se sobrepõe ao demais.

 

dc


segunda-feira, 10 de maio de 2021

A imagem desfocada


Em determinado momento descobrimos, que a memória de alguém outrora importante nas nossas vidas, ficou reduzida a um rosto, tudo o mais, já se diluiu nos interstícios daquilo que fomos acumulando, como conhecimento físico, ou das emoções que percorrem a pele e se dispersam em milhares de terminações nervosas. Na imagem desfocada da memória os traços evidentes foram-se esfumando; os seus lábios, a cor dos seus olhos, o realce e forma das pestanas e sobrancelhas, os fios de cabelo, castanho-claro, esfumam-se no emoldurar do rosto, a delicadeza do seu nariz, em contraste com as maças do rosto, suaves e rosadas de outrora têm um desenho difuso. É um rosto que funciona de forma subliminar, que vai perdendo a capacidade de se evidenciar no meio de muitos outros que circulam ao seu redor, perdendo a clareza da forma, para se distinguir, dos demais; é uma imagem suavizada quase sépia de uma beleza estranha, que evoca tristezas e ausências, sem a consciência do porquê. Possivelmente, aquele rosto trouxe-o dos sonhos, numa última tentativa de resistência, à perda definitiva, caso contrário lembrar-se-ia dele com maior rigor e definição, assim como do corpo e outras coisas partilhadas, que estavam ligadas ao passado.

dc



sábado, 8 de maio de 2021

A ver o rio

 

 

Cheguei e passeei-me pela beira rio, depois sentei-me e fiquei silenciosamente, observando os praticantes de exercício físico de fim de semana e de todos os dias, os passeantes, a sós, de mão dada, ou lado a lado conversando, e os que simplesmente, como eu, sentados, eram companheiros de partilha daquelas imagens, que se sucediam como um filme aos nossos olhos. Quanto a mim, fui seduzido pelas crianças na sua algazarra alegre, brinquei com eles nos baloiços, pesquei à cana, voei com as gaivotas, naveguei com os pequenos barcos de recreio, vibrei com a brisa que vinha do mar, banhei-me de sol e alonguei-me no horizonte que me trazia a outra margem fervilhando de movimento e cor. Uma certa leveza se foi apoderando de mim, fazendo-me esquecer das máscaras incómodas, o medo que ainda se sente, nos olhos escondidos nas olheiras profundas, nos desvios de trajectória ao cruzar dos caminhos. Fui para onde o pensamento me quis levar e quase me esqueci, que o tempo passava e tinha de regressar. O espanto da situação deixa-nos aturdidos, não sabemos se vivemos, ou se sonhamos, temporariamente ficamos fora do chão e uma paz interior se instala e um prazer estranho nos faz sorrir e caminhar de regresso, ao velho mundo que habitamos, com energia renovada.

dc



quarta-feira, 28 de abril de 2021

Não há como fugir


Apaguei tudo aquilo que te documentava e que me lembrava de ti: as fotografias, a escrita trocada, a morada, os números de telefone, as ligações digitais, a forma de vestir, as reacções intempestivas, as frases menos assertivas; até, coloquei um perfume activo dentro da casa para apagar os cheiros que me lembravam momentos em que estávamos como unha e carne, pele sobre pele, boca sobre boca. Recorri a todos os estratagemas, só não contei que a memória me atraiçoasse, com outros processos, intervindo, recordando-me a todo o momento que, tu existes, e estás algures vivendo. Quaisquer olhos que vejo são os teus, se o cabelo tem determinada cor, ou formato, lembra-me o teu; qualquer figura que circula, independentemente do lugar ou espaço, perto ou longe, tem algo de teu. Até as imagens na publicidade, nos filmes, na internet, ou nas revistas de entretenimento, sempre me trazem à memória algo da tua pessoa. Mas, mais incrível de tudo, é ter-me deparado com este texto, escrito por ti, e guardado no meio de centenas de folhas de papel para rascunhos:
    

Passear de mão dada..gargalhar de felicidade…ver estrelas aconchegada num abraço…discutir no meio do hiper o que fazer para o jantar…cheirar velas de baunilha e chocolate e pensar qual das duas comprar para aquela noite mágica…ver um filme debaixo da manta e comer pipocas os dois…
Sentir ,,,saborear..absorver…partilhar e viver intensamente as  emoções e os sentidos!…gostava de voltar a ter isto tudo!…mas não tenho e possivelmente já não terei!


Se o Universo faz isso, será que o faz para não desistirmos, ou para que aprendamos pela experiência? Seja qual for a intenção, demora tanto a acertar, nem determina uma data para que se cumpram os seus desígnios, em vez disso, nos atrapalha a vida e o tempo de a viver.

 

dc