terça-feira, 21 de junho de 2022

Incoerências

Ele cirandava pela rua escura de edifícios em ruínas. O miar do gato ao longe, e o ruído que chegava das casas, eram a sua única companhia. O ambiente era idêntico ao modo como estava vivendo, tudo lhe era pesado, ele, contra o mundo. Pensamento absurdo de quem não encontra solução para os seus próprios problemas e se agarra ao pessimismo. Ultimamente, era comum meter-se em batalhas de opiniões e discussões, onde quase sempre ficava sem norte e acabava por se empertigar, perdendo a razão, diluindo-a nas nuvens negras, que ele próprio gerava. Sabia, ter de procurar, fora dos sítios habituais, as respostas, mas acima de tudo, encontrar dentro de si, as perguntas. A rotina instalada, de esperar que as coisas aconteçam, não abria horizontes. Para se obter resultados, é necessário definir bem o que se procura, onde procurar e o que se deseja encontrar. Ali, ele cirandava, mas também, sentar-se na esplanada olhando as plantas do jardim, ou no areal, observando a ondulação mar, só por si, não resultaria, se efectivamente, não deixasse o espírito libertar-se e ter a coragem de arriscar. Ele queria ser alguém, que não se servisse das palavras de forma inadequada, para enganar as emoções, ou alimentar falsas ilusões, antes usá-las para alimentar sonhos e que o ajudassem a enfrentar a realidade. Este debate, permanente dentro de si, espelhando dúvidas, retirava-lhe o sossego, a incerteza no provir, era uma merda. Sim, sabia o que o comum das pessoas dizem: o importante é viver o presente, blá, blá, blá. Pois, está bem, e como se pára o pensamento, que circula à velocidade suprasónica, nessa busca, duma razão para este seu estado de espírito? A culpa será da economia, da pandemia, do medo viscoso que ainda domina as pessoas, no registo da distância física segura, na máscara que açaima, na surdez às evidências, ou na aceitação, da mentira de vozes variadas de sentido único, em todos os media, em especial os televisivos, que agora nesta guerra dos eslavos, se veio acentuar? É bem possível que seja tudo isso, que nos faz perder o norte, pôr em causa os valores com que fomos educados, de duvidar do que aprendemos, do nosso conhecimento, da nossa capacidade de lutar e amar, de expor das fraquezas humanas. Fraquezas estas, exploradas por técnicos e especialistas vários, no sentido de moldar quem somos, para sermos aquilo, que quem domina a sociedade, quer que sejamos. Será essa, a razão da angústia, da dificuldade de comunicar, de fechar o rosto, ou desabar em palavras incoerentes e perdidas de sentido? Possivelmente, a maioria dos outros, nunca entenderão esta “pescadinha de rabo na boca”, que o trouxe a esta rua escura, afastado do comum dos mortais, a sua maioria catequizados por leis e pressões, daqueles que na sombra exercem o poder.
Naquele, caminhar sem destino horas a fio, sem saber porquê e quando parar, a cada passada, surge uma reflexão, uma emoção, a visualização abstracta, o sonho, o desejo de que tudo mude sem que “perca o fio à meada” da existência. É uma busca incessante de perguntas para a resposta que não tem.

 

 

dc

terça-feira, 14 de junho de 2022

Despedida


Sabes, meu bem, era bom ouvir, chamares-me de amor. Infelizmente, nunca ajustaste a vocalização às frases e emoções certas, acima de tudo, às atitudes. Se assim fosse, talvez acreditasse, que valeria a pena continuar. Não foi o caso, e como também sabes, caminhos paralelos, nem no infinito se encontram. Na caminhada longa, que se me propunha, subjacente à palavra, não poderia perder o meu tempo, nem despender energias, que poderiam ser mais úteis, para a descoberta e concretização do meu objectivo. Encontrar o tal, alguém, que faz bem, o que deve ser feito, e encontrar a alegria e uma parte da felicidade, que a todos, o Universo tem para dar. É bem possível que nunca tenhas reparado, mas eu gosto de estórias de amor, que tenham aquelas declarações, mesmo que piegas, que emocionam e deixam lágrimas nos olhos, que projectam eternidades e heranças positivas. Daí, não nos acomodemos, façamos então o que deve ser feito, deixemos de lado o mapa, que não foi desenhado para a caminhada das nossas vidas. Só assim, outro corpo, outra inteligência, cheiros, saberes, risos e lágrimas, chegarão até nós, semeando existência e humanidade necessárias ao caminho de cada um. Foi bom conhecer-te, foi bom aprender e descobrir nesta nossa experiência, que a amizade existe, mas o amor, que se sonha e quer, é uma outra coisa, que se adentra em nós e nem sempre as palavras explicam.

 

dc

 

terça-feira, 7 de junho de 2022

Mãos e seu fascínio

 


Só ficavam os olhos, cor de céu, encimando o rosto, e um cabelo, agitado, de cor clara. O restante do rosto desaparecia debaixo do azul da máscara. Estávamos os dois num gabinete, iluminado o suficiente, para sugerir um espaço reservado. As perguntas tornaram-se presentes e o diálogo se estabeleceu, de forma higiénica, cumprindo com a minha razão de ali estar. As perguntas surgiam e a minha resposta era prolixa, como se quisesse alongar o tempo para poder observá-la. Estranha a forma como ela continuava escrevendo registando o meu depoimento, de cabeça levantada, os olhos me observando e os dedos se agitando sobre o teclado do computador. De vez em quando, ela questionava de forma simples e levava-me a desenvolver o meu discurso. Eu perdia a atenção para o que dizia, olhando os dedos da mão dela, movendo-se com rapidez, quase aflorando as teclas. Dedos esguios, compridos, aveludados, belamente desenhados, como se os delimitassem uma só linha sinuosa. A certo momento, não resisti, quebrando as regras do protocolo profissional, disse-lhe: as suas mãos são muito bonitas! Naquele momento, eu misturei diferentes sentimentos e interpretações, fiquei de forma insólita abstraído do tempo real.
     “ O espaço se torna vazio, o ruído de fundo esmorece...só mãos, como se estas nascessem com o saber das emoções.”

Poderia ter~lhe dito, o quanto elas eram belas e fascinantes, só o receio, de que a voz traísse o meu empolgamento, me levou a usar o corriqueiro: bonitas mãos!
     “Tantas vezes mãos prelúdio de uma música maior, seguindo a pauta de um amor que se descobre. Tantas vezes mãos sustento de um amor maior, no caminho sereno dos dias...”

 

dc



Texto em itálico do blogue: http://escrifalar.blogspot.com/2017/02/maos-se-tocam.html


segunda-feira, 30 de maio de 2022

Encruzilhada de Maio

O mês está no fim. Existe uma ausência, não procurada, que dê sentido às palavras para formular textos. A confusão está instalada no pensamento. Os pensamentos ocorrem, em catadupa, do mesmo modo, que o excesso de informações e a sua variedade temática. Pior, é o conflito, entre aquilo que preenche esses meus pensamentos e a vida real que vai ocorrendo à volta. Escrever sobre isso, mesmo que de forma desordenada, reflectirá pelo menos, algo que possivelmente será transversal a muitas outras boas gentes.

Aqui entre nós, o 25 de Abril passou sem alegria. Um nazi que veio de fora, tirou-nos o desejo e prazer dos festejos. Veio lembrar o poder do capital para dominar os povos. Uma voz, lá de longe, que nos faz arrepiar a pele, com as memórias que nos transportam para um passado de perseguições e mortes. O 1º de Maio, passou quase despercebido, foi insuficiente para animar os que lutam contra o trabalho precário, o desemprego, ou alertar para a forma como estão dominados pelos poderes instituídos. Ficamos reduzidos a uma individualidade induzida, que afasta as pessoas da convivência. Individualidade, que na falta de análise objectiva, está carregada de comodismo, que anestesia a sociedade, plantada por quem manda, para que a obediência seja cega e o colectivo acéfalo. Os mandantes trazem à liça todos os especialistas necessários, para que o trabalho seja feito em nome de uma ciência, que só serve o seu fim. Vimos sendo ensinados, a fazer exercícios e a ir ao ginásio, para aprendermos a olhar somente para o nosso umbigo. Fazer do achismo e opinião própria, que se afasta da ética e da vivência, e criamos muros que nos isolam julgando estar acompanhados. Perante isto, quase que me sinto impotente para dialogar, e procurar a resposta para tanta passividade. Maio para uns têm “Fátima” e peregrinações, outros, desespero no dia a dia de sobrevivência, neste presente inquinado.

 

dc


sexta-feira, 22 de abril de 2022

Amar tem isso

 


Não, não importa que os teus lábios pousem nos meus, como que breves, num sopro de despedida para os sonhos. É um gesto de amor, dizendo, sem palavras, eu estou aqui. Isso é tão suficiente, que fico plena, confiante com o que representa. Amar tem isso, fazer que o simples tenha sentido. A leveza e a graciosidade do voo da borboleta, não lhe tira o colorido e a beleza. Somos assim, amantes, fervorosamente sentindo nas pequenas coisas, a amplitude da totalidade.

 

dc


terça-feira, 12 de abril de 2022

Não lhe dói envelhecer

Não lhe dói envelhecer, dói-lhe que o amor tenha falhado, quando mais queria que ele acontecesse. Tanta foi a procura, tantos os erros cometidos, que se foi a oportunidade de ele ser, ou de saber, ou até se aperceber, se alguma vez ele rondou a sua porta. É possível que na ânsia de o encontrar, se lhe tenha ausentado a capacidade de discernir quando ele estava a acontecer. Houve momentos, que ele quis florescer, mas, uma ou outra razão, o fez recuar, e assim, foi perdida a oportunidade que merecia. Uma coisa que ele sabe, a sua força e o quanto ele nos abala. Em cada recuo, houve sempre uma dor fininha que se adentrou, tão fundo, que tornou cada vez mais difícil abrir a porta para ele entrar, mesmo tendo consciência do quanto seria desejado e bem-vindo.

 

dc


sábado, 2 de abril de 2022

senhores disto tudo

Olhei, vi as mãos, desenhadas a sangue, rasgadas pelo arame farpado dos senhores do mundo. Senti, como se na própria pele, a tortura e o campo limitado da vida humana, submetida às sevícias dos “senhores disto tudo” que se sentam na esplanada do mundo do sucesso contabilizando, investimentos em ferro fundido e bombas. Desconhecidos, eles, assumem normal caridade, nas realidades mundanas e nas vivências, onde a ética não tem vocabulário que a suporte. Eles são donos das palavras e das imagens, dos comeres, das vestimentas, e por fim, da vida das pessoas.
Por vezes, pergunto-me, até onde nos deixamos perder, suportando que haja quem se julgue dono do mundo. Já não sentimos a ausência dos afagos, do descanso e do rejuvenescer da natureza, absorvidos que estamos pelas diversas rotinas opressivas e limitativas. Emprego, casa, casa emprego, alimentar-se para sobreviver, olhos na TV, ou num qualquer computador, ou telemóvel, e um bocejar na atenção aos próprios filhos, esposa, ou familiares. As amizades, essas vão escasseando, não abunda tempo para a partilha, quando muito alguns minutos, escorridos no balcão de um qualquer bar, frente a uma cerveja que refresque, amenizando as dores da alma e a miséria social onde coabita. Na mulher, a que mais sofre, vislumbra-se nos olhos fundos e húmidos a dor das dificuldades, num sobreviver marcado pela ausência de amor e carregado pelas muitas vicissitudes de mulher, mãe e trabalhadora com direitos sonegados.
Somos povo? Talvez, se calhar, talvez mais formigas, servindo cigarras e suportando gafanhotos tiranetes oportunistas, cursados nas universidades do dinheiro fácil, arrivistas, especialistas de roubos que se não veem, donos de escravos modernos, na espera dos transhumanos futuros, mascarando-se humanos, sem limitação de tempo de trabalho, sem reivindicações, sem emoções, ou compromissos sociais e culturais.

Caminhamos para o abismo, e, perante o perigo, a solução, tem sido dar um passo em frente em direcção ao abismo, tal o amorfismo que nos tolhe e que nos prende, como uma corda com nó de marinheiro. Aceitamos ser prisioneiros, das falas, com voz de falsete, que hipnotizam e tem reforço e apoio nas “medias” corporativas, que nos provocam a ilusão de que o gato é uma lebre, que teremos acesso ao mundo dos sonhos e que “um dia se trabalharmos” muito havemos de lá chegar.

 

dc