quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

É uma árvore, ponto

A sua imagem agarra-me o olhar. Surge em mim um enorme desejo de a abraçar, como se quisesse sentir a seiva da vida, aperceber-me da sua comunicação com a “sua” sociedade, ou se ela, também, relata as suas dores de existir. Sem coragem para me aproximar e passar aos actos, na impossibilidade para ir mais longe, como mulher casada que não queremos como amante, tento trazê-la para dentro da máquina, fixando-a no espaço restrito, artificial, dos números e traços digitais. É o egoísmo cego, de possuir algo e fazê-lo meu, a que posso recorrer em qualquer situação, em que, vê-la, ajuda-me a decidir, a ganhar maior entendimento de dificuldades emocionais, que é necessário enfrentar e resolver. Assim, registo as suas linhas abruptas, a sua cor, o seu contraste com o ambiente que a envolve, o recorte variado, dramático, majestático da totalidade do seu corpo. Tento saber das razões, do seu fascínio sobre mim, discernir a emoção que se adentra, tomando-me o corpo. O tempo decorre e fico apatetado, hirto, olhando como se uma, outra, dimensão me possuísse, desbravo mentalmente, dezenas de frases e palavras que tentem esclarecer o que me move. Reflicto sobre o seu modo de sobrevivência a cada intempérie, frio, sol, ou calor. Como reage à acção do homem, cada vez que lhe cortam os braços e diminuem-lhe a envergadura, e o fenómeno do seu renascer, com novas formas, com aquela sobranceria, vistosa, cobrindo-a de novo traje e novas cores, como se nada tivesse acontecido. Assume nova imagem, espera as mudanças num ciclo repetitivo, em que o crescimento se vai dando, transmitindo alegria, nesse seu ressurgir, mais viva do que nunca, da dor temporária das amputações, toda se reformula, no florir da sobrevivência. O que se aprende com elas? Quão próxima, ou distante, é a sua existência, dos seres humanos? O que tenho de aprender com ela, qual a essência que nos comunica? Questiono em silêncio, não por necessidade do saber, mas mais, para saborear da estranheza daquilo que representa como "ser vivo". Todo o raciocínio fica longe de qualquer explicação.É uma árvore, ponto.

 

dc


quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Fim de tarde


Recusando que a noite aconteça, ela se sobrepões iluminando detalhes, que não deixam despercebida a sua presença. Usa a imagem, a melodia do corpo, a riqueza das palavras e a natureza de ser mulher. Deixando-o atarantado entre o lusco-fusco da descoberta de uma inteligência acima da média, um humor que rasga sorrisos e insinua incapacidade de se dar na totalidade. Ela derrama os olhos pelo chão, escondendo neles, o brilho que a denuncie, temendo ceder à probabilidade de voltar a amar.

dc

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

A memória do beijo

Reconheci aquela voz, surgida do nada, lá de longe, percorrendo centenas de quilómetros, naquela linha invisível que atravessa o ar, sem mudança das nuances que a tornam única. Chegou trazendo com ela memórias, emoções, sentimentos que pareciam já ter sido diluídos, nas insónias, nos dias de vazio, na metamorfose do envelhecimento. O som saído da sua boca, continuava quente, num tom que acarinha cada palavra que pronuncia, como acariciando os meus ouvidos. Tomei-me de pavor, o meu cérebro não visualizava, nem discernia na escuta, os contornos da sua boca, o seu sabor, a textura dos seus lábios, a sua humidade, nem se em cada beijo outrora dado, a língua se insinuava entre os lábios. O tempo mostrava, que a memória do beijo é mais difícil de explicar e de memorizar. O silêncio, o afastamento, a ausência de outras estórias, as noites e dias com a crueza da sobrevivência, foram afastando das memórias, a materialização do teu sabor em mim. Depois de a ouvir, reflecti e pensei, que só repetindo o beijo, o gesto, a atitude, a razão de ele acontecer, poderia fazer regressar todas essas sensações e saber quanto vale um recomeço.

 

dc


terça-feira, 29 de novembro de 2022

Talvez seja...

Eu sei que precisas de mim, que não vives sem a minha presença na tua vida. Quando, por alguma razão me ausento, ficas frio incomunicável, vazio, silencioso. Os teus olhos perdem o brilho, a tua boca é uma linha que não se desmancha, as tuas mãos ficam geladas, os teus braços não reconhecem o prazer dum abraço. A tua criatividade esmorece, nada do que produzes tem alma, nada te satisfaz, és uma página de rascunho permanente. Sem mim não destrinças, na guerra dos sentidos, a paz da agitação. Tem vezes que te desculpas, justificando, não quereres mais sofrer, sendo preferível a abstracção. Dizes para ti próprio, que assim, evitas a tristeza, que a minha ausência traz ao teu crescimento. Covardemente, foges daquilo que eu te dou, tens medo do engrandecimento e da nobreza dos sentimentos que desperto em ti. Esmagas-me com a mesma fúria com espezinhas as folhas secas, que no chão o outono deixou, nessa raiva de saberes o quanto sou importante. Temes ouvir o meu nome, evitas que seja pronunciado e o que ele representa, mesmo sabendo tu, quantos o usam, na sua forma de estar neste mundo, partilhando-o e sentindo a felicidade de o possuírem. Contrariando esse teu pensamento, procuro que reflictas, se vale a pena fugir de mim, eu tão simples, como as quatro letras que fazem meu nome, mas que não deixará de te motivar, surgindo no deitar das noites, como um mantra que se repetirá e te ajudará a adormecer, colando-me assim aos teus sonhos, como a tua sombra até que novamente, faça parte intrínseca de ti e do teu vocabulário de existir. Talvez seja dor, talvez seja pieguice, talvez seja amor

 

dc

 


domingo, 27 de novembro de 2022

Resistir, resistir sempre

 


Alimentamos fantasmas, esgotando a capacidade de entendimento. Procuramos razões, fugimos de nós, sem saber onde tudo começou e acabou, desviamos os olhos e o pensamento, para o lugar das flores, na espera de que o seu aroma nos distraia, da sujeira que nos rodeia, como paliativo, ou disfarce, da precariedade em que vivemos e das dores que somos tomados. Torna-se difícil tolerar, os que usam o poder, para nos enganarem, dizendo que estão do nosso lado. Levam-nos ao extremo das dificuldades e depois tentam corromper-nos a moral, dando o dinheiro que nos foi roubado. Eles preocupam-se com os outros, em guerras e terras distantes, e esquecem-se daqueles que diariamente são espoliados na sua casa. Não é o povo que faz as guerras, permite o enriquecimento dos bancos, e dos oligarcas, ele só conhece uma coisa, o trabalho e ter de lutar diariamente, desde que nasce, para possuir algo que minimize as más condições materiais, culturais e de saúde, necessárias à sua subsistência. Continuamos, resistindo e persistindo em contrariar esse, quase destino, acreditando que um dia, com o esforço comum dos povos, possamos impedir que parasitas nos governem, e poderes subterrâneos imponham as suas vontades.

dc


terça-feira, 15 de novembro de 2022

Sem seguir o rebanho


A voz se perdeu, especialistas consultados, não lhe encontram solução. Dizem as más-línguas, que são as falas guardadas, as desculpas não expressas, os remorsos, a depressão, as dores não explicitadas toda uma série disparada de motivos. Adivinham-se médicos, das maleitas dos outros, como se treinados pela experiência da cura das suas. Não entendem a natureza humana, da perda da vitalidade do corpo, do cansaço do uso, do arrastar das memórias, da pressão dos dias e da vivência. Filósofos da vida alheia, de uma penada, dão sugestões de cura, opinando, como agora é comum fazer-se, mesmo desconhecendo, ou investigando sobre. Felizmente, que a persistência, o acreditar que a mudança, ainda tem espaço para acontecer, que não existem limites para o sonho, para os projectos e realizações, que se sobrepõem ao cansaço das vozes dissonantes e patéticas de figuras do nada.

dc


segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Uma pausa necessária


Conversador e ouvidor, agora, só tinha o silêncio, o seu silêncio. O ruído existe nos outros e no que o rodeia, mas está fora de dele. Não assimila ruídos, nem imagina ruídos. Os seus tímpanos estão cobertos de cera da indiferença à escuta. Sente-se um surdo de nascença, que lê nos lábios, vê gestos, talheres que se cruzam, pratos que se chocam, copos que se tocam, bocas que se movimentam, beijos de diferentes intensidades, mãos que se agitam, sorrisos e pretensas gargalhadas. Sente uma ausência tamanha, como se estivesse suspenso sem gravidade, estava, tal qual, no cinema mudo de outrora. É uma total ausência de estar, uma suspensão de vida, é um silêncio de necessidade, que ninguém interrompe, que o faz fechar a boca e não pronunciar qualquer ruído. É bem possível, que o motivo esteja errado, ou seja, o receio de falar sem acerto, que o faz isolar, sem dizer aos outros que não está comunicável. Tem de fazer uma pausa para se reencontrar, descobrir como falar correto, sem magoar, ofender, ou alimentar debate inútil do saber, ou de ter, a pretensa razão. Precisa do estímulo certo para um dia voltar aos ruídos, às palavras e à escuta, que por agora enfadonha e um pouco desestimulante, lhe tirou a curiosidade, a paciência e o prazer da conversa.

 

dc