terça-feira, 10 de maio de 2016

DESPI-me da TRISTEZA





Despi-me da tristeza
Gargalhei como a hiena
Usei as cores do papagaio
Alimentei-me da luz do sol
Fiquei leve como uma pena.

Caminhei
Na paz do caracol
Deixei a mente divagar
Tomando o voo à águia
E ao açor o seu planar.

Pelo céu azul
Ou pelas ondas do mar
Fui de Norte a Sul
Sem nada procurar.

Se havia terra prometida
Nem queria saber
A vida é para ser vivida
Não há tempo a perder.


dc


quarta-feira, 4 de maio de 2016

Há dias que um homem...





Ali estava ele sentado à esquina do tempo segurando as pontas, para que o pensamento não se extravasasse saindo pela boca, dizendo o que não devia.
Diz o povo “calado é o melhor”, neste  caso é bem certo, quando estamos estimulados por disparates sem sentido de pseudo eruditos, podemos perfeitamente correr o mesmo risco, na ânsia de responder, de acumular os nossos disparates aos que se observam ou se lêem. Uns têm dúvidas, outros ciúmes, outros ainda petulância, e, por esta, ou aquela razão, falam, falam, quando assim é, na maioria das vezes, no que se diz, “vira-se o feitiço contra o feiticeiro”, e se acaba por estragar tudo perdendo a razão, pois afinal a “montanha pariu um rato”. Por isso, ficou-se, quieto e meditando, olhando sem ver, esperando que “ a chuva passasse” e numa outra altura “tirar tudo da geleira” e com calma chegar a bom porto.


Forma estranha de começar um dia que tudo tinha para ser bom. Sol, temperatura agradável, mar calmo, pequeno almoço do melhor e sem contas para pagar.

“Há dias que um homem de manhã não pode sair à noite” ...(tenho de me rir para quebrar.. a tensão.)


dc

domingo, 1 de maio de 2016

No correr do tempo



Deixaste-me vazia nesta agonia de tempo perdido, olho sem respostas o chão plantado de incertezas, nada encontro de rastos do que poderia ser adivinhado no agora acontecido, tal a ternura a doação com que nos demos e a riqueza das nossas emoções.

O sol percorre todo o seu caminho e eu sinto o anoitecer que vai chegando dentro de mim, nem a sombra do que éramos resistiu, se diluiu. Talvez as rugas que se me afloram no rosto te assustassem, talvez a frescura do meu corpo já não te acalentasse, talvez... sempre o talvez das coisas físicas, que se sobrepõe ao sentimento, ou que o vão enviesando no caminho, trazendo rés à pele, a verdade escondida, o engano e a ilusão.


É uma certeza que os anos nos vão queimando etapas, e muito de físico se vai derrocando, no entanto na estrutura do que eu sou, na juventude com que me sinto, nada me impedirá de recomeçar, algo mais forte, mais sólido, com a experiência e sabedoria do percurso percorrido, sabendo agora, se o talvez acontecer já não me surpreende, já estará desenhado no mapa que escolhido e lhe trocarei as voltas antes que chegue. 

O medo existe e é salutar, ele a razão da coragem para vencer.

dc





sábado, 30 de abril de 2016

Surpreende-me




















Surpreende-me
Trás-me
Outras verdades
Outros gestos
Outras vontades.

Trás-me toda tu
Inteira de ti
Disponível
Com outra força
Com outro querer
Com outro acreditar.

Trás-me
O tal amor
Que não veio
A caricia que se perdeu
O Beijo que era meu.

Trás, vem sem demora

O resumo duma vida
Dura menos de uma hora
Não há tempo a perder
Temos de aproveitar 
O tempo e viver.

dc


sexta-feira, 29 de abril de 2016

E do amor que dizer?




Somos barcos presos ao cais
Pelas amarras da incerteza
E o casco a envelhecer.

Do (a)mar
Perdemos a sua beleza.

Como um barco sem arrais
Nem bússola a indicar.

E do amor que dizer?

Morrerá devagar
Sem voltar a navegar.

dc



segunda-feira, 25 de abril de 2016

Uma VOZ de ABRIL



“Existe uma voz dentro de ti que te diz, que se não resistires tudo o que é bonito te será retirado.” Autor desconhecido

Temos de cumprir com essa voz e não deixarmos que nos tirem tudo o que de bonito e grandioso nos trouxe o 25 de Abril de 1974. A estória abaixo publicada é uma das muitas, que em diversos lugares e momentos, aconteceram e que juntas são o registo do percurso, para se chegar a esse dia da revolução dos cravos.


A MALA DA GEORGETE
O 25 de Abril também foi isto

Era de tarde, num dia ensolarado de Março de 1973. Estava moído pelo cansaço e pelo calor, agravados pela caminhada até à Praça de Touros de Setúbal. Nada conhecia daquele sítio nem daquela terra. Era o local de encontro com alguém que nunca vira. À hora certa, no local combinado. Na cabeça, a repetição da mnemónica da senha que validaria o encontro. Tinha 22 anos, era desertor e estava a entrar na “clandestinidade”.
Poucos momentos depois, vi aproximar-se, lentamente, uma senhora magra de cabelos brancos. Os braços esticados por vários sacos que se adivinhavam mais pesados do que pareciam e que lhe queriam sair das mãos.
Aproximou-se e, com um breve sorriso, recitou a “senha”, para meu espanto. Nunca a imaginaria ser o contacto esperado, funcionária clandestina do Partido e responsável pala organização de Setúbal. Só depois do 25 de Abril é que soube que se chamava Georgete Ferreira e que era do Comité Central.
Rapidamente abandonamos o local e, poucos dias depois, estava eu a trabalhar com as organizações clandestinas de juventude do distrito.
Tinha alugado um apartamento na Torre da Marinha, Seixal com o meu novo nome: Carlos Miguel Soares Lopes. Era num prédio bem localizado e estabelecemos excelentes relações com o senhorio. Como era visível a uma distância razoável utilizávamos as persianas como “semáfora” de segurança para entrar em casa. Um local seguro, portanto.
Um dia, organizei uma reunião de um organismo no Barreiro em que a Georgete quis participar. A reunião durou mais tempo do que estava previsto. A noite aproximou-se e trouxe com ela uma tremenda tempestade. A alimentação eléctrica de grande parte do distrito colapsou. Ficamos na rua à chuva e às escuras. Georgete decidiu então que seria melhor pernoitar em minha casa. E lá fizemos o caminho, com vários cortes intermédios com recurso a diferentes táxis. Chegados ao prédio, e uma vez que não havia electricidade, a campainha não funcionava. Como o apartamento era no primeiro andar, umas pedrinhas nas janelas alertaram a Luísa, a responsável da casa, de que estávamos à porta. E entramos. E a Luísa até tinha feito um bolo de bolacha que comemos descontraidamente. Pouco tempo depois, estávamos na cama, posta a tranca na porta, que era um barrote de madeira de razoável dimensão, que nos permitisse, em caso de assalto da polícia, ter algum tempo para destruir os papéis mais comprometedores.
Poucos minutos depois ouvem-se pancadas vigorosas na porta. Sobressalto. Não era nada que se esperasse. A dúvida salta de imediato: é a polícia, fomos detectados e íamos ser assaltados e presos. Sem grande tempo para pensar e tentando manter a normalidade, desarmei a tranca da porta e, do curto diálogo que se seguiu, decidi abrir a porta. Uma luz forte de lanterna encandeou-me os olhos e a pergunta imediata: esta senhora mora aqui? A lanterna baixou para a mão do visitante onde estava, encaixado na palma, o bilhete de identidade da Georgete. Ao olhar para baixo reparei que o homem que me interrogava estava de chinelos, o que me tranquilizou um pouco “não era de certeza polícia” pensei. E respondi: sim, é a minha tia que está connosco. Então, o homem na escada disse ser o nosso vizinho do rés-do-chão e explicou: a minha filha chegou tarde e na entrada encontrou uma malinha de senhora. Abrimo-la e pensamos que poderia ser daqui. Quer vir lá abaixo busca-la? E lá fui sem imaginar o que me esperava. No balcão da cozinha, iluminado com várias velas, estavam devidamente e organizadamente espalhados jornais Avante, documentos dactilografados e dinheiro. A foice e o martelo eram omnipresentes. Quer conferir para ver se está tudo?-perguntou o vizinho. Não, não é necessário,- respondi enquanto metia tudo na mala - a minha tia e eu agradecemos-lhe o cuidado.
A Georgete tinha pousado os sacos à porta quando chegamos a casa e, ao pegar-lhe, deixou abandonada, sem dar conta, a malinha na entrada.
Chego a casa. A consternação e a preocupação eram totais. Rapidamente começamos a destruir os documentos mais sensíveis. A possibilidade haver uma denúncia e de surgir a polícia era enorme. Era urgente traçar um plano e deu-se início a uma discussão das mais extraordinárias em que participei. A Georgete dizia que eu e a Luisa tínhamos que abandonar a casa o mais cedo possível, porque éramos jovens e o futuro da organização; nós dizíamos que ela era a dirigente responsável e é quem tinha de abandonar a casa. Nós ficaríamos. Até porque se saíssemos não tínhamos contactos que nos pudessem ajudar. E foi isso que aconteceu.
Durante a espera, que durou até ao fim da tarde do dia seguinte, arrumamos a casa para partir. Foram horas preocupadas pelo que poderia acontecer.
Um camarada “legal” veio recolher-nos e lá fomos para um refúgio preparado.
Uma das regras da clandestinidade era que não se podia abandonar casas. Por isso, uma semana depois deste acontecimento, a Luisa voltou à casa. Primeiro passou pela mercearia onde a interrogaram pela ausência e nada relataram de qualquer actividade policial. Mais confiante, entrou e estava tudo como deixamos.
Os meus vizinhos, que nunca conheci, souberam naquela noite de tempestades exactamente o que nós fazíamos e calaram-se. E tenho quase a certeza de que foi por solidariedade, pelo menos gosto de ter essa sensação reconfortante. Porque, na verdade, sem os apoios e protecção das populações, o trabalho de organização política clandestino em ditadura não seria possível. O 25 de Abril seria muito mais difícil e provavelmente não aconteceria como aconteceu.
Relato esta simples história como forma de homenagem a todos os desconhecidos que contribuíram decisivamente para que a história se cumprisse.

Porto, 25 de Abril de 2016
Nelson Bertini