quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Quando o dia nasce



Descarregou a noite no disco rígido dos dias, como se quisesse manter eternamente guardada a escuridão, preservando o dia. A noite trazia-lhe os cansaços, as tristezas, a vida com seus embaraços, os ruídos nitidos, vigorosos, como todos os sons na calada da noite, tudo isto preso a uma certeza que se fundia com o pior das memórias.
Prendia os olhos no monitor, a sua luz referenciava o espaço em volta, assim se deixava ir agarrando palavras, imagens e estórias que se confundiam com as que ía inventando. Não se queria preso às paredes manchadas de figuras fantasmagóricas, que conformavam o habitáculo. Fugia, mantendo-se no mesmo lugar, alimentando a falsa ideia de que tudo mudava, para que o dia chegasse mais depressa.

Já houve um tempo, em que as noites se preenchiam em volta de uma mesa, em tertúlias de amigos, vivas e participadas, que acabavam pela madrugada sentados na borda de um qualquer passeio das ruas da cidade, Houve outras, que decorriam na observação do luar iluminando a terra, onde o seu silêncio só era interrompido com as vozes sussurradas no amor, que se fazia debaixo das estrelas correndo o céu.

Anseia que o dia chegue, trazendo-lhe o céu azul, a luz do sol afastando-o das paredes fechadas de penumbra, a brisa beijando-lhe a face e o ruído das vozes indistintas, coladas ao trinar dos pássaros, que enchem o ar. Nesse momento se rejuvenesce e tudo tem outro sentido. E volta a esperança de que o seu rosto surja a qualquer momento de entre um virar do dia. Não que a realidade não seja crua, por vezes, até as nuvens cinzentas perturbam, mas é muito mais visível e sem fantasmas. Vê o amigo e o inimigo, percebe o mexer dos lábios com as palavras que deles saem, olha nos olhos e lê as pessoas, Sente o prazer da leitura, na esplanada de um qualquer café, ou o prazer de um passeio à beira mar. Sente o mundo com a cor e brilho que a noite não possui. É a paz entrando em si, como o soro no sangue ajudando a superar a doença, Por isso, quando o dia nasce, a vida acontece.

dc

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Observo...



....na imagem partida, parte da minha vida se esconde entre as linhas que limitam o que sou. Agarro-me com força, a este meu pensar, não quero muito mais revelar, deixar que se saiba das minhas tristezas, das minhas loucuras, dos meus amores perdidos, das minhas cicatrizes. Sirvo-me do que vejo para me avaliar e não para que outros me possam julgar. Esta a minha melhor forma de criar limites próprios, não só perante quem nada sou, mas mesmo para com os que de perto me vão descobrindo.


dc

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Se não sais de ti





"Se não sais de ti, não chegas a saber quem és."
 José Saramago


Determinas o espaço
Do tempo escasso
Que te sobeja
Assim queres que seja

Fechas a porta
Sem olhar para trás
E esperas que não fuja
E que aguarde por ti

Se não sais de ti,
Se me dás o que te sobra
O tempo não se desdobra
E fico sem saber quem és.



dc

Mãos se tocam



Quando as mãos se tocam, os dedos se enlaçam, o arrepio entra na pele para dentro de nós, tudo se desmorona, tudo se esquece, as faces tornam-se róseas, os olhos se dizem em seu brilho, os corpos comunicam sem palavras e se elanguescem. O tempo não existe, é uma acontecer sem idade, sem lugar. O espaço se torna vazio, o ruído de fundo esmorece...só mãos, como se estas nascessem com o saber das emoções.
Tantas vezes, mãos, prelúdio de uma música maior, seguindo a pauta de um amor que se descobre. Tantas vezes, mãos sustento de um amor maior, no caminho sereno dos dias...
Quando voltares, para caminhar ao meu lado, não te esqueças que as tuas mãos me desenharam arabescos na pele, antes de sentir o calor dos teus lábios, antes mesmo de te amar por inteiro...


dc

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

O TEXTO QUE NÃO ESCREVI


Hoje bem cedo, quando me preparava para iniciar a minha caminhada rotineira, tocou o telefone, como era muito cedo assustei-me, pensei o pior. Quando olho no visor, e vi o seu nome ainda fiquei mais preocupado. Atendi, e a noticia deixou-me um pouco em estado de choque, afinal a montanha não pariu um rato, mas um autêntico dinossauro, não havia nada a temer e recebia uma das mais belas notícias de toda a minha vida. Minha irmã tinha concluído a licenciatura!
Escusado será dizer que hoje caminhei de sorriso de orelha a orelha, sempre a pensar como encontrar as palavras adequadas, para no meu blog, dizer tudo o que havia para dizer, sobre toda a sua aventura. Não me saía da ideia o chavão “ querer é poder” e a canção Exílo, cantada por Adriano Correia de Oliveira e que tantas vezes ouvíramos:
 
     Venho dizer-vos que não tenho medo
     A verdade é mais forte que as algemas.
     Venho dizer-vos que não há degredo
     Quando se traz a alma cheia de poemas.

Aqui substituia inconscientemente a “verdade”, por “vontade”. De facto, só uma vontade indómita de levar a bom porto o seu objectivo, é que a fez superar todas as difculdades, profissionais, familiares, e emocionais, que ao longo do curso lhe foram surgindo.
O texto ficou por fazer, escondido dentro de mim, há espera de coragem. Quando hoje, pela tarde, abro o Facebook e leio o texto do meu sobrinho Miguel, pensei para comigo, nada podia ser dito tão bem, ainda bem que não me atrevi.
Por isso, hoje no meu blog, o texto que eu não escrevi tem um significado superlativo. O orgulho pelo feito conseguido pela minha irmã Branca e pelo belo texto escrito por um sobrinho, que a honra, e ele próprio orgulho de todos nós.

dc


BRANCA, A MINHA TIA BRANCA
O dia amanheceu assim, com lágrimas. Explico: esta senhora é minha tia. Chama-se Branca Carvalho, tem 63 anos, e acaba de se licenciar na Escola Superior de Educação de Viana do Castelo.
Quando estava quase a fazer 20 anos, entrou para a clandestinidade para lutar por um País novo. Na manhã de um domingo de Maio de 1973, atravessou de barco as águas onde rio e o mar se abraçam até à margem da Afurada, deixando para trás família, emprego e identidade. Passou a chamar-se Mariana, nome de código. E só apareceu em casa a 29 de Abril de 1974, quando a liberdade já não voltaria atrás. Quando chegou, havia flores novas na velha casa do Vale Formoso. E cheirava a bolinhos de bacalhau, quentinhos, acabados de fritar.
Hoje dirige um ATL em Viana do Castelo, o Descansa a Sacola, que é um modelo de ensino e onde não faltam poemas pelas portas e paredes. E onde parte da minha família ainda luta, até ao último cêntimo, até ao último verso, para que as crianças possam sonhar e viver num amanhã mais decente.
Devo-lhe uma pequenina parte do País que hoje temos. Aquele que não está falho de memória e sabe que as lutas só terminam quando sabemos que o nosso semelhante adormece com a mesma dignidade com que desperta. Por isso, pelo País que ela sonhou (e, em parte, ainda somos), a minha tia escolheu sempre os outros. Quanto ao “eu”, logo se via...
Devo-lhe, e a todos os meus tios, a melhor infância e adolescência que se pode ter, onde nunca faltaram os pedaços de sonho que devem comandar a vida. Houve festas, abraços e afetos a rodos. Livros, filmes, canções e momentos vividos estrada fora, vida dentro, costurados como devem ser sempre os laços e as memórias: eternos.
Nesta família, já passámos por muito, já passámos por tudo.
Caímos, mas levantamo-nos. Ela mais vezes. Nunca baixou os braços.
Para ela, uma dificuldade nunca é uma dificuldade. É apenas um caminho mais apertado, mais demorado, para que as mãos possam, de novo, tocar o céu. Ou tentar, pelo menos. Sou suspeito, mas acreditem: a vida dela é um exemplo de sacrifício e abnegação, onde nunca faltaram os sorrisos sempre prontos para os dias mais aziagos.
Hoje pela manhã, quando as lágrimas me escorreram de felicidade, lembrei-me de tudo isto. E de como a vida pode ser, afinal, justa e devolver-nos sonhos, novinhos em folha, se soubermos que os apeadeiros e as curvas apertadas fazem parte do percurso. Para isso, precisamos, por vezes, de alguém que nos inspire. No meu caso, chama-se Branca. Branca Carvalho. A «Mariana» que, no País sombrio de 1973, já lutava sem a certeza de dias claros, sem saber quando a liberdade viria. Ou se viria. Mas nunca desistiu.