sábado, 11 de abril de 2020

Não era um patinho amarelo


Numa pausa da minha leitura, enquanto observava a natureza que me rodeava, surge ele do nada, saltitante, feliz, sem se preocupar com as coisas comuns, de nós mortais, nos dias de hoje. A pequena cabeça parecia ter antenas, movimentando-se olhando à esquerda e direita para cima e para baixo, como se fosse movida a corrente eléctrica. A minha presença certamente trazia-lhe curiosidade e talvez temor. Aproxima-se e afasta-se com rapidez, como se tacteasse a confiança. Ele desconhecia a palavra “Pandemia”, ou quarentena, nem saberia de muitas outras que falavam de morte e dor. Só conhecia as diferentes estações do ano, o passear nas nuvens, a nidificação, os seus predadores e a procura atenta de comida no solo. Também não sabia que aquele seu pular vagabundo, com pequenos passos rápidos, faziam-me ficar atento e deliciar-me com a riqueza e a esperança que me trazia, de que o mundo é muito mais que pequenas coisas, mesmo quando carregadas de morte e frustração. A sua roupagem preta, trazia agarrada a si um amarelo vistoso, que se apagava e surgia no meio das ervas e das flores. Captar a sua imagem no visor da máquina e registá-la, era uma missão difícil, que valia como memória para mais tarde recordar. Tinha consciência que por muito bela que a imagem fosse, ou o que relatasse, a estória que contaria visualmente, seria sempre insuficiente para contar o momento de “convivência”. Daquele instante curto de comunhão (minha, pelo menos) com aquela figurinha, tinha a certeza de que a imagem ficava aquém das mil palavras e das emoções sentidas. Não era um patinho amarelo de peluche, com amêndoas da Páscoa, na montra de uma qualquer loja, era sim a vida, em ponto pequeno, manifestando-se.

dc

sábado, 4 de abril de 2020

Entre os raios de sol, gozando as sombras



Calmamente, vestiu-se e saiu para colocar o lixo no contentor. Cumpriu as regras. Levava um pequeno frasco com gel de álcool, e "dodots" no bolso, para o que fosse necessário. Manteve a distância entre os poucos que se cruzavam consigo, não contactou nem foi contactado, passou entre os raios de sol, gozando as sombras. Como sempre trazia consigo uma capa com um bloco de notas e um livro, o de hoje, Se Esta Rua Falasse. Não parou no contentor mais do que o suficiente, fez-se distraído de si próprio e continuou, durante cem metros, na circunvalação, depois virou para a rua, que sabia deserta, quando a escola está fechada. Se aquela rua falasse, lembraria quanta vez por ali passou, procurando fugir da agitação dos dias e encontrar um pequeno espaço, onde a ambiguidade entre a cidade e o campo existia. Ele precisava de encontrar-se, abraçar a natureza com os olhos e os seus cheiros e não se perder, no medo, ou no pânico, de todos os dias, sugerido em imagens e textos nos média. Precisava do ruído silencioso da natureza. A dado momento, encontrou um muro de pedra, baixo o suficiente para se sentar à sombra de uma árvore e poder ler o seu livro. Tinha de parar um pouco os ruídos das mortes, da pandemia, do que fazem as elites financeiras, as vozes dos governos e acima de tudo mitigar, para si, a dor daqueles, que diariamente, de forma dura procuram cumprir solidariamente e tomar decisões para que todos outros fossem sobrevivendo.
Abriu o livro e lentamente enquanto dava um último olhar no ambiente que o rodeava. Entrou finalmente na leitura do livro. O romance não era de todo alegre, falava de amor, mas também de racismo e da injustiça social a que a sua negritude os condenava. Ele, preso por um crime que não cometera, ela, grávida, ambos esperando, ele a libertação, ela que a criança nascesse. A sua estória dava alento para acreditar que o amar se sobrepunha a todas as outras coisas. De vez em quando, levantava os olhos para uma pausa, olhava em volta, e recriava-se com o ruído do riacho, dos pássaros e da brisa que corria. Enquanto isso o tempo correu.

Não lhe apetecia interromper a leitura. Até que, do nada, surgiu um carro da polícia, que parou perto de si, ao princípio pensou que pudesse ser por sua causa, mas não, foi para interpelar um motociclista que ia em sentido contrário. Nessa altura apercebeu-se do tempo decorrido, era o momento de regressar, antes que a via principal começasse a ter movimento demais. Mais uma vez, dando passos controlados, observando quem vinha, fugindo de contactos, como um detective, que não quer ser descoberto.
Furei a quarentena, pensou, mas não coloquei ninguém em perigo. Só tinha acontecido,
porque na sua mente se confundiam inverno e primavera, a esperança se resumia ao findar dos dias deste  seu entardecer da vida e perante este presente sobreviver à maldade de alguns homens, que destroem o nosso mundinho, plantando um vírus mortal.
A atitude assumida não foi a mais correcta, mas entre isso e o risco de ficar louco, ao fim destes dias todos, fechado em casa, arriscou. Agora com as pilhas carregadas, é como se tivesse tomado a primeira parte de uma vacina e pronto para nova etapa de sacrifício.

dc


Entre os raios de sol, gozando as sombras (imagens)

"Precisava do ruído silencioso da natureza. A dado momento, encontrou um muro de pedra, baixo o suficiente para se sentar à sombra de uma árvore e poder ler o seu livro" dc

sábado, 14 de março de 2020

VH+1- we love the…

No silêncio da casa, a música ressoa reflectida pelas poucas paredes ausentes de livros. A sua sonoridade adentra pelos pensamentos e traz emoções várias, transporta-me para a carruagem dum comboio de sons, numa viagem de um único destino sem paragens intermédias. Sinto que os olhos se fecham, as imagens desenham-se na mente de uma forma quase real. Por que não me deixar ir, como se de meditação se tratasse. O pensamento, viaja e cria cenas sucessivas, com gentes e lugares diferentes, numa vertigem de acontecimentos que parecem encaminhar-nos para respostas que de algum modo quero saber. Os acontecimentos e as frases visuais parecem querer mostrar algo imensurável, a tensão interna aumenta, mas algures no cérebro, como se existisse uma chave de código, condiciona o acesso, e estabelece o limite até onde ir. Surge a necessidade de abrir os olhos e rapidamente encontrar um chão, como uma espécie de apneia, ou um aviso de que estamos a passar os limites do que devemos conhecer, sobre nós, ou do mundo que nos envolve. Uma caixa de Pandora, que aberta irá trazer-nos para um mundo que nos modificará a existência.
Olhos bem abertos, uma sensação indescritível, assenhora-se do corpo, com a estranheza e um desconforto que me divide entre o que deveria ter descoberto e um medo fundo das consequências caso isso tivesse acontecido.
Viver o ser humano que somos ainda está longe do nosso conhecimento. Não falo, daquilo que alguns chamam de vidas passadas, mas sim da capacidade de armazenamento de conhecimento acumulado, que dentro de nós reside, e, parece impedido de surgir à luz do dia, temendo pela nossa sanidade, ou onde poderíamos chegar com tal conhecimento.


dc

quinta-feira, 12 de março de 2020

Aqui e só


Aqui só, sentada, na penumbra o silêncio e eu formamos o enquadramento necessário, para dar azo a imaginação, analisando e construindo projectos. Não existe calor nem frio, nem chuva ou sol, nem a brisa se sente, mesmo com as coxas desnudas. A percepção do corpo é mais nítida, a urgência de ti é maior e o diálogo abstracto vai procurando perguntas e respostas, sugestões e soluções, que mitiguem as razões da ausência, a distância que existe, o abraço que não chega e o cheiro das flores não surge anunciando a Primavera possível. O pensamento vai mais longe, do que este lugar onde me encontro, e vai-me mantendo no fio da navalha entre o estar ou partir.

dc

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Para além das palavras

Acordara para um rio de sentimentos, dos quais as lágrimas falavam. A sensibilidade era como humidade entrando nos ossos. Deixava marcas e um frio adentrando… enquanto as lágrimas corriam… como um estilete na ponta dos dedos, desenhando sobre a pele do rosto todas as memórias, para além das palavras.
dc


domingo, 23 de fevereiro de 2020

A memória do beijo acompanhava-o


Sentou-se no mesmo banco, onde sempre se sentavam, vendo as margens do mesmo rio. Agora só havia uma única sombra, marcando o chão cinzento. A cor ambiente, no entanto, era dourada, tão dourada como dourados eram os sonhos que naquele banco, foram tecidos, quase sem palavras. As pessoas circulavam de forma prazerosa, aproveitando a nesga de sol e calor que neste final de inverno começava a abrir as portas à primavera. Embora fosse Carnaval, viam-se grupos, talvez famílias, conversando e caminhando; homens e mulheres correndo ou andando de bicicleta, outros com os cães à trela. Havia pessoas sentadas em bancos conversando, ou simplesmente deixando correr os olhos pelo rebuliço e beleza que a paisagem lhe trazia. Ali estava ele, como era seu hábito. Os pensamentos vagueavam sobre o significado da frase que lera: guarde o melhor beijo da sua amada, na sua memória, para a ele recorrer para lhe adoçar e tornar mais fácil superar a angústia e a saudade. O sol ia caindo e a sua luz reflectia-se na água. Levantou-se, seguiu pela margem, caminhando em direcção ao pôr do sol, captando as sombras de outros, os sorrisos alheios, o contra luz nas árvores, o desenho dos barcos parados, balouçando nas águas. Havia um ruído de fundo e uma brisa mansa, que lhe trouxe um sorriso aos lábios. A memória do beijo acompanhava-o.

dc